sexta-feira, 10 de julho de 2015

Artes

Entrevista a Marco Scarassatti* 

AG: Como encaras o binómio arte sonora/música enquanto instrumento de abordagem à tua prática artística?
Marco Scarassatti: De um lado eu gosto de falar que a Música é meu modo de estar no mundo, de perceber, fruir, pensar o mundo, é meu modo de agir e elaborar conceitos. Por outro lado, creio que meu trabalho se insere muito mais num conceito de Arte Sonora do que propriamente de Música, isso se pensarmos ela de forma estrita, da forma como essa produção sociocultural humana se consolidou ao longo de sua história. Entretanto, ao se considerar o quanto o fazer musical se expandiu, principalmente após a segunda metade do século XX, creio ser mais oportuno pensar hoje em Arte Sonora, Arte do Sons ou mesmo Sônica, ainda que a «posse» desse território, no primeiro caso, esteja muito mais sob o domínio dos artistas visuais que apreenderam o conteúdo material, conceitual e plástico do universo musical. É como se o conceito Música não comportasse mais as práticas que podem se considerar música.
Eu entendo que haja uma discussão sobre a natureza que distingue esses campos, mas eu prefiro pensar que a Arte Sonora emerge mesmo é como conceito e a partir de um processo de expansão de sistemas artísticos que se consolidaram historicamente com suas práticas sociais, estéticas, poéticas e políticas: as Artes Visuais e a Música. E por ter uma natureza de borda, a Arte Sonora permite uma dupla adesão a esses dois sistemas. Como conceito, considero-a mais inclusiva, inclui a própria Música e as Artes Visuais. É como a ideia da pele que interliga os nossos sentidos de contato com o mundo. Mesmo essa pele tem duas faces, uma que é tocada pelo mundo no qual estamos submersos, outra que é tocada por aquilo que internamente nos constitui. Nós nos constituímos como ser nessa passagem entre o interno e o externo e nos percebemos como ser no mundo, a partir dos nossos sentidos interligados.
E a abrangência do fazer musical, desde o que o senso comum conhece como música, passando pela relação de inserção e contágio desta com o visual, o contrato audiovisual e, por conseguinte, a utilização sistemática do ruído, música concreta e eletrônica, a música eletroacústica, a aproximação da música às demais linguagens e expressões, a paisagem sonora, o desenho de som no cinema, a música pop e sua apropriação, colagem e deformação pelos DJs, a radioarte, as esculturas sonoras, o circuit bending, música para celular, a criação de ambientes e instalações sonoras, os happenings, performances e ação política de intervenção sonora em espaços públicos; todas essas manifestações retratam a paleta de atuação artesanal, poética e conceitual daqueles que intencionam fazer do som seu veículo de expressão, filtro da realidade, leitura de mundo.
De alguma forma sempre me interessou na Música aquilo que não era música, aquilo que estava do outro lado da borda e que me obrigava a atravessar. A relação com o espaço físico, com a forma plástica, com o conceito; me interessa os sons indesejados na produção dos sons desejados, o instante de tempo que antecipa a música, que firma o acordo de separação entre o ordinário e o extraordinário. O som como gerador da forma e a forma como geradora do som.
AG: Para quem desconhece a tua prática sonora, poderias falar um pouco sobre os diferentes projectos em que estás ou estiveste envolvido?
MS: Eu sou formado em composição musical e, no conjunto, a minha busca está na construção poético-política de espaços sonoros, sejam eles miniaturizados, ambientais, territoriais, performativos ou simulados.
Uma parte importante nessa busca é tentar representar as sonoridades através de uma forma plástica e ao mesmo tempo dar a essa forma a possibilidade do som musical que a completa como estrutura. Tento compor essas estruturas com fragmentos de objetos encontrados, que contêm em si um som cristalizado em forma. Fora do contexto inicial, vinculado ao objeto, instrumento, conceito inicial do qual ele é proveniente, este fragmento abre-se na possibilidade de se juntar a outros fragmentos, outros objetos e, a partir daí, compor com eles uma forma complexa, composta por um aglutinado de pequenos símbolos que se desdobram em potência latente para uma sonoridade resultante. A esse aglutinado simbólico dou o nome de Emblema Sonoro.
O Emblema Sonoro, nesse caso, tenta ser uma composição musical em forma plástica, também sonora, literária, ou ainda uma tentativa de construção poética de um campo espacial pelas sonoridades relacionadas a objetos, imagens, textos, conceitos e histórias. Aglutinações simbólicas em formas plástica e sonora das memórias recolhidas em um percurso, que é o da criação dele próprio.
Não sou um Luthier, eu penso estar compondo quando construo formas sonoras. Particularmente procuro não afinar meus instrumentos seguindo qualquer padrão, tampouco repito as afinações, me interessa o desafio da afinação do grupo, não no sentido das afinações dos instrumentos em particular, mas na singularização dos instrumentos/performers e sua interação com o coletivo. Intervalo é território e cada instrumento inventado circunscreve o seu próprio território em cada situação na qual ele é empregado.
Nesse sentido tenho feito esse trabalho de construção de dispositivos musicais, que me ajudam a pensar sobre a música e sobre a improvisação. Vou destacar alguns aqui:
1) Tubal Cretino e o Flugel Sax Sretino: o primeiro tem uma história mais extensa, guardei durante anos a mangueira e o chuveirinho do banheiro da minha bisavó, queria fazer um instrumento da família dos cretinos do Smetak. Quase vinte anos depois, encontrei uma campana de um instrumento de sopro e a juntei a um tambor de um maculelê. Ele atravessou esses quase 20 anos até que ficasse pronto, aguardando a chegada de cada uma de suas partes. Já o Flugel Sax Cretino é feito de uma mangueira de jardim, uma campana de flugel e uma boquilha de sax alto. Fi-lo em 2013.
2) Tzim Tzum (2005), esse é um instrumento que também foi se transformando até chegar à forma atual. Em 2002, fiz uma escultura sonora para deixar na escola onde eu dava aulas, procurei no ferro velho as peças e criei a forma. Ela não durou muito; então peguei as rodas que compunham o objeto e fixei-as num eixo, dei o nome em princípio de Vórtice. Depois, com os estudos sobre a Cabala, em particular o mito de criação do universo, me deparei com o drama cósmico «tzim tzum», em que o criador tem de fazer um movimento de retração para poder criar espaço e consequentemente gerar a vida. Esse drama é representado por círculos concêntricos. Dessa forma, criei um emblema sonoro representando o drama e utilizei essas rodas para dar forma ao que eu vinha pensando, coloquei-o sobre uma caixa de isopor amarela, com ferros de construção fincados nela atravessando-a de fora para dentro. É um instrumento para ser amplificado por contacto, pode ser percurtido, ou simplesmente girado, pois gera um harmônico na rotação.
3) Harpa Paleolítica (2013) instrumento de cordas, feito com bambu, cabaça, ferros rosqueados e cordas.
Em relação ao espaço e a intervenção sonora no espaço, destaco esses trabalhos:
1) «Defasagem» (1995) é uma composição para 6 pianos e prédio. Foi o primeiro trabalho em que lidei com uma estrutura ambiental, um misto de instalação, happening e performance em forma de composição. Os pianos ficavam dentro das salas de aula e o público do lado de fora do prédio.
2) «rio» (2013) feito em parceria com Fernando Ancil. Desde que cheguei a Belo Horizonte, fiquei espantado quando numa caminhada pelo centro descobri que debaixo das ruas há uma quantidade enorme de rios canalizados que, em meio aos sons do trânsito e da cidade, ficam quase apagados. Pode-se ver esses rios através de grades que ficam no asfalto, como clausuras, em que ao fundo se vê o vulto do córrego em movimento. São 150 km de córregos canalizados, escondidos da população e que só são percebidos pelas grades expostas no asfalto das ruas. Ao nos aproximarmos delas, o canto do rio timidamente transpõe seus limites, mas sua sonoridade é engolida pelo trânsito e outros sons da cidade. Passei a gravar esses sons, desde 2011 e, no final de 2013, propus ao artista visual Fernando Ancil pensarmos em viabilizar uma intervenção desses sons no quotidiano da cidade. Dessa forma, nos aproveitamos dos altifalantes já instalados para se fazer a difusão de áudio de uma feira na cidade. «rio» é uma intervenção urbana que usa os sons captados desses córregos canalizados, amplificando-os através do sistema de som instalado num trecho da Avenida Afonso Pena, que é uma das principais da capital mineira; são mais ou menos 60 altifalantes dispostos ao longo de aproximadamente 250 metros da avenida. O intuito foi criar um leito de rio audível sobreposto aos sons da cidade através de um transbordamento acústico.
3) «Sonoridades Visíveis» (desde 2012). Nesse caso a ideia é lidar com imagens que remetam para uma sonoridade. Utilizo o stencil com a imagem do corpo de uma cigarra, daqueles que encontramos nas árvores. Quando encontramos na árvore esse «corpo» é porque a cigarra já cantou, penso ser a memória do seu canto. Pois bem, grafito em postes, muros e paredes essa imagem, que não é da cigarra a cantar, mas sim é a memória da cigarra que por ali já cantou.
4) Capacetes para deriva sonora. Atualmente tenho construído capacetes sonoros, que são dispositivos de escuta ambiental. Cada capacete produz um tipo de filtragem e, portanto, possibilita uma escuta diferenciada. Essa alteração na escuta mobiliza os outros sentidos e acabamos por nos tornar todo um ouvido em movimento. Com esses capacetes tenho feito derivas sonoras pela cidade, com grupos pequenos em que cada qual se deixa levar pelos sons que mais o afecta. Tenho feito também na forma de um percurso em que de tempos em tempos o público troca de capacete. Dessa forma, a música está em quem escuta e da forma com a qual escuta.
A atuação e interação com esses emblemas e dispositivos sonoros fez resultar em algumas experiências composicionais e improvisacionais, das quais eu destaco:
1) Sonax: O Sonax é um grupo de investigação musical criado por mim e pelo Marcelo Bomfim em 2003 e, desde 2005, contamos também com o Nelson Pinton. Em 2008, lançámos pelo selo Creative Sources Record o CD que leva o nome do grupo, cuja proposta é Comunicação pré-palavra/devires e sons, interação do sujeito-ambiente com os sonoros-objetos, na construção/intervenção (mito)poética do espaço sonoro; trabalho de criação de esculturas musicais e intervenções sonoras com live electronic em espaços públicos e privados; performance utilizando objetos plásticos e sonoros criados de resíduos e vestígios da sociedade contemporânea: caixas de madeira, tubos de PVC, sucatas, polias, molas, cordas e cravelhas. Na criação desses objetos as possibilidades de interatividade musical aliam-se à apreciação plástica. A performance é criada a partir do inventário dos fragmentos musicais extraídos das sessões de improvisação e interação com os objetos, com a manipulação desses sons eletroacusticamente e a relação dos mesmos com o espaço da apresentação.
2) Novelo Elétrico: Novelo Elétrico foi pensado como uma construção poética de espaços sonoros tendo como matriz a improvisação com instrumentos musicais não usuais, inventados e objetos situados entra a música e as artes visuais. A ideia surgiu a partir de dois desejos. Um deles foi o de dar um sentido ritualístico à prática, manter a hora e a forma de preparação, preparação da sala, do corpo, exercitar a respiração. O outro desejo foi o de realizar essa empreitada sozinho, de uma forma artesanal, dentro de casa e não de um estúdio e atuar como músico e técnico, na verdade entender tudo como uma coisa só. Dessa forma, eu mesmo gravei, toquei, editei e fiz a mixagem do trabalho. Somente a master não foi feita por mim, foi feita pelo Nelson, do Sonax.
O novelo é um emaranhado de fios que antecede a tecelagem, ou mesmo é posterior a ela, quando se organizam as sobras. Em princípio ele não é o objeto do fio, seu destino final, do ponto de vista do trabalho, mas se constitui como uma forma, um quase objeto, que sempre depende da maneira como é enrolado. Ascende ao estatuto de objeto-brinquedo pelo uso das crianças e felinos. Em cada um dos novelos a sala de gravação foi preparada de uma forma diferente, com os instrumentos a serem tocados espacializados e com os microfones posicionados. Um gravador digital ficava aberto para capturar os sons ambientais. Uma imagem pertinente ao processo é a do cinegrafista que posiciona a câmara para sair por trás dela e performar dentro do quadro filmado. Só que essa performance consistiu em fazer desprender dos objetos, sons que atuassem com os demais sons atuantes nesse campo sonoro.
Na improvisação geradora, todos os elementos presentes no campo audível da gravação foram incorporados e interagidos como elementos constituintes do fluxo musical, na constituição do espaço sonoro. Essa reunião de elementos espaçados temporalmente deu um sentido de profundidade ao campo; aliás, na improvisação, o espaço se constitui no decorrer do tempo. A improvisação inicial gravada, portanto convertida em áudio, já era um fio complexo e, como tal, foi esgarçado ao máximo de acordo com suas potencialidades. Essas potencialidades estavam dentro de um âmbito ligado ao tempo, ao gestual, à textura, à corporeidade, ao timbre, ao ruído, ao sentido de profundidade e a uma qualidade de ambiência. Penso que cada elemento sonoro foi levado ao seu extremo. Esse fio tornou-se novelo, e novelo pelo caráter artesanal do processo manual de feitura do trabalho, esse fio-áudio foi emaranhado, retorcido, enrolado numa forma de um novelo abstrato; transformado numa imagem-sonora mental, com elementos do espaço acústico da gravação e do entorno.
Cada novelo é um lugar inventado, um quase-objeto tridimensional, um espaço para ser ouvido e que é habitado pelos elementos que são performados e pelo corpo que performa e é apreendido na escuta como gesto. Se a música é um tempo dentro de um tempo, a ideia do novelo elétrico é que ele seja um espaço dentro do espaço da audição. O Novelo Elétrico foi lançado como CD, também pela Creative Sources, em 2014.
AG: Em que medida concebes esse conceito de política no âmbito de uma criação sonora na actualidade, e em que medida esse conceito se encontra ligado à noção ou conceito também de espaço sonoro?
MS: Eu penso que o som tem sempre uma implicação no espaço. Quando deflagrado, ele atua sobre o espaço emprestando-lhe o seu atributo de temporalidade e, ao mesmo tempo, se acomoda, se molda a ele, tomando-lhe emprestada sua dimensão e materialidade. A difusão de um som emana espaço que se sobrepõe ao espaço físico. Numa música os sons desprendidos atuam entre si e sobre o local, sobretudo criam um espaço a partir da interação entre essas sonoridades. Portanto, quando eu penso na construção e na percepção de um espaço sonoro, eu penso em como se apreende e como se pode constituir esse espaço através dos sons. Toda a criação sonora é para mim a criação de um campo espacial vinculado ao tempo e à interação entre as sonoridades dessa criação: intervalos, texturas, silêncio e gestos. E esses fatores implicam se espaço sonoro criado, experienciado e vivido, virá a ser contínuo, descontínuo ou fragmentado.
Dito isso, penso que o artista, quando cria algo, cria não só esse algo como também inventa um modo de fazê-lo e esse modo de fazê-lo fica impregnado na criação. Quando crio um emblema sonoro, um instrumento musical composto por fragmentos de objetos encontrados, retirados do seu contexto original para se construir algo novo, o que fica impregnado na criação é a possibilidade de que se faça e se pense um mundo em que os objetos possam continuamente trocar de função, de acordo o novo projeto. Cria-se a possibilidade de que se interrompa a cadeia de produção industrial para apenas usarmos o que já está fabricado, desmontando os objetos para dos seus fragmentos se inventar outras formas e coisas, com ou sem a funcionalidade primeira. O mesmo pode se dar com os conceitos e porque não com o próprio conceito de música. O conceito do que é música pode ser reformulado a cada novo projeto, a cada novo grupo que se constitui em torno da prática, do fazer musical.
Inventar um modo de fazer é também inventar um modo de estar e atuar no mundo e para mim isso é fazer política, um modo de organizar as ações, as percepções, o sensível num processo contínuo de troca, de partilha e de confronto. Quando falo da construção política do espaço sonoro, é que essa construção fica impregnada dos modos de organização das forças atuantes nesse espaço, ao mesmo tempo em que esse espaço sonoro inventa também um modo de organização da percepção e atuação nesse espaço. Penso também que o que está sempre em jogo é a transformação, por afecção, do público em uma comunidade de participantes que interrogam o próprio fazer artístico e para atuar também como criadores. A formação e ampliação dessa comunidade está na idéia de partilha dessas experiências e processos, e na contaminação por contato, seja em ambientes informais virtuais, como os nichos específicos das redes sociais, comunidades, grupos, ultrapassando esses limites, no investimento do próprio fazer artístico como experiência social, seja nas ruas ou nos espaços destinados a isso, e também nos ambientes formais, como na atuação na educação formal, escolas e universidades.
  

*Marco Scarassatti 

Artista sonoro, compositor e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Marco Scarassatti (Campinas, 1971) desenvolve pesquisa e construção de esculturas, instalações e emblemas sonoros.
Mestre em Multimeios e Doutor em Educação, ambos pela Univesidade de Campinas, possui artigos publicados nas áreas de Trilha Sonora, Educação Musical, Improvisação e Curadoria em Música Contemporânea.
É colaborador na revista eletrônica portuguesa Jazz.pt e autor do livro Walter Smetak: O Alquimista dos Sons (Editora Perspectiva/SESC), publicado em 2008.
Criou e participa do grupo Sonax, com o qual gravou pelo selo europeu Creative Sources Records o CD Sonax (2009). É autor ainda dos CDs Walter Smetak: O Alquimista dos Sons (2008), Novelo Elétrico (2014), Rios Enclausurados (2015).
  
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