terça-feira, 20 de agosto de 2013

Poesia

Iate Santo Amaro

Quando eu era pequeno, vinha o navio de sal,
Era um acontecimento!
E meu tio António Machado ia sempre ao areal
Com o seu óculo de alcance desencanudando a barlavento.
Era um iate cheio de cordas e de velas,
Chamado Santo Amaro, o Veloz ou o Diligente
E, como trazia o sal, que é o sabor das panelas,
Era esperado tal qual como se fosse um ausente.
Na barra do horizonte era um ponto sozinho,
Mas crescia no vento a sua vela crua,
E o sol, ao morrer, tingia-lhe de vinho
A proa que vestia a pau a vaga nua.
Ali vinha, do Alto, sem sextante nem erro,
Enchendo devagar as previstas derrotas,
E plantava no fundo a sua raiz de ferro
Fazendo abrir no céu como flores as gaivotas.
As raparigas sãs da ribeira do mar,
Que traziam na pele um aroma silvestre,
Punham os olhos muito compridos, a cismar
Nas cordas que secavam as roupas íntimas do Mestre.
Os pescadores mediam com a linha das pestanas
O tamanho do Audaz, a sua popa alceira:
Nunca tinha arribado àquelas praias insulanas
Tanto pano de verga, tanto oleado, tanta madeira!
Por isso, abrindo nas rochas duras
A branca humanidade das suas nocturnas casas,
Se encostava ao bater daquelas velas escuras
Como o corpo de um pássaro se deixa levar pelas asas.
Mas a bolacha-capitão cheia de bicho, e a água salobra,
O olhar amarelo e vazado que tinham as lanternas de vante,
A magra soldada que toda a companha cobra,
E a calma podre que apenas tem o navio flutuante;

O frio de rachar na noites devolutas
O baldear do convés, todo em veios de breu,
E quantas outras vãs marítimas labutas
Ali curtidas, entre mar e céu:
Nem isso, nem o sal nos porões engolidos ̶
Espécie de luar para ver às avessas ̶ ̶
Lembrava aos pescadores e aos patrões absorvidos
No lucro da chegada e no valor das remessas.
Assim o meu navio de sal, que precipita
Em pedrinhas de neve águas sem importância,
Guarda por fora intacta a sua linha bonita
Escondendo talvez o melhor da sua ânsia.
Ah, se ele fosse salgar os caldos já tragados,
Tornar incorruptível a mocidade já verde,
Interessar o óculo do velho tio e os vidros suados
Da janela que ao longe este horizonte perde!
Se fosse encher de branco as paragens insonsas,
Manter o gosto a vida aos dias moribundos,
Conservar as faces às moças
E o movimento aos mares profundos,
Então sim! Levaria a porto e salvamento
A sua carga.
Na dúvida, Capitão, espera o vento,
Iça as velas e larga!



Vitorino Nemésio, «O Navio de Sal» in O Bicho Harmonioso, 1938