Iate Santo Amaro |
Quando
eu era pequeno, vinha o navio de sal,
Era
um acontecimento!
E
meu tio António Machado ia sempre ao areal
Com
o seu óculo de alcance desencanudando a barlavento.
Era
um iate cheio de cordas e de velas,
Chamado
Santo
Amaro,
o Veloz
ou o Diligente
E,
como trazia o sal, que é o sabor das panelas,
Era
esperado tal qual como se fosse um ausente.
Na
barra do horizonte era um ponto sozinho,
Mas
crescia no vento a sua vela crua,
E
o sol, ao morrer, tingia-lhe de vinho
A
proa que vestia a pau a vaga nua.
Ali
vinha, do Alto, sem sextante nem erro,
Enchendo
devagar as previstas derrotas,
E
plantava no fundo a sua raiz de ferro
Fazendo
abrir no céu como flores as gaivotas.
As
raparigas sãs da ribeira do mar,
Que
traziam na pele um aroma silvestre,
Punham
os olhos muito compridos, a cismar
Nas
cordas que secavam as roupas íntimas do Mestre.
Os
pescadores mediam com a linha das pestanas
O
tamanho do Audaz,
a sua popa alceira:
Nunca
tinha arribado àquelas praias insulanas
Tanto
pano de verga, tanto oleado, tanta madeira!
Por
isso, abrindo nas rochas duras
A
branca humanidade das suas nocturnas casas,
Se
encostava ao bater daquelas velas escuras
Como
o corpo de um pássaro se deixa levar pelas asas.
Mas
a bolacha-capitão cheia de bicho, e a água salobra,
O
olhar amarelo e vazado que tinham as lanternas de vante,
A
magra soldada que toda a companha cobra,
E
a calma podre que apenas tem o navio flutuante;
O
frio de rachar na noites devolutas
O
baldear do convés, todo em veios de breu,
E
quantas outras vãs marítimas labutas
Ali
curtidas, entre mar e céu:
Nem
isso, nem o sal nos porões engolidos ̶
Espécie
de luar para ver às avessas ̶ ̶
Lembrava
aos pescadores e aos patrões absorvidos
No
lucro da chegada e no valor das remessas.
Assim
o meu navio de sal, que precipita
Em
pedrinhas de neve águas sem importância,
Guarda
por fora intacta a sua linha bonita
Escondendo
talvez o melhor da sua ânsia.
Ah,
se ele fosse salgar os caldos já tragados,
Tornar
incorruptível a mocidade já verde,
Interessar
o óculo do velho tio e os vidros suados
Da
janela que ao longe este horizonte perde!
Se
fosse encher de branco as paragens insonsas,
Manter
o gosto a vida aos dias moribundos,
Conservar
as faces às moças
E
o movimento aos mares profundos,
Então
sim! Levaria a porto e salvamento
A
sua carga.
Na
dúvida, Capitão, espera o vento,
Iça
as velas e larga!
Vitorino Nemésio, «O
Navio de Sal» in O
Bicho Harmonioso,
1938