segunda-feira, 14 de março de 2016

Dom João de Castro - o Académico

D.João de Castro, o Académico
Na nossa memória colectiva perdura um homem de exemplar personalidade e nobreza de carácter, com notável carreira militar e política, a par da sua notória aptidão e gosto pela investigação científica, traços que bem falta fazem na conturbada sociedade moderna e conjuntura presente, a configurar a “anarquia madura” de que fala o Prof. Adriano Moreira, não exclusiva de Portugal, mas que em nada nos alivia da preocupação.
Em relação à sua produção científica, datam de 1536 as primeiras obras teóricas de D. João de Castro, nomeadamente o “Tratado da Esfera, por Perguntas e Respostas a Modo de Diálogo”, e ainda um outro pequeno tratado, sob o título “Da Geografia por Modo de Diálogo”.
Durante estes dois anos anteriores à partida para Goa, D. João de Castro permaneceu na sua predilecta quinta localizada em Sintra, então designada de Fonte d’El-Rei e posteriormente conhecida por Quinta da Penha Verde, onde continuaria os seus estudos e receberia alguns amigos mais próximos, como o Infante D. Luís, o Vedor da Fazenda, D. António de Ataíde, o Conde da Castanheira e o negociante italiano Lucas Giraldi. Para aí voltaria após o regresso em 1543, refugiando-se na quinta herdada por morte de seu pai, em SET1528.
Ao partir, pela primeira vez, para a Índia, em 1538, integrado na Armada do seu cunhado, o Vice-Rei D. Garcia de Noronha, ao comando da Grifo, uma das onze naus que a compunham, logo aproveitou a viagem para escrever o primeiro de quatro interessantes roteiros, apenas três chegados aos nossos dias.
Essa obra inicial, o Roteiro de Lisboa a Goa, tinha como primeiro objectivo o registo “(...) sob a forma de um cuidado diário de navegação todas as indicações técnicas úteis para conhecer melhor este tipo de viagem e contribuir para o seu aperfeiçoamento”. 
Mal chegado a Goa, logo integraria uma expedição a Diu, aquando do primeiro cerco a essa cidade estratégica, aproveitando para escrever um segundo trabalho, com dedicatória ao Infante D. Luís: o Roteiro de Goa a Diu ou Roteiro da Costa da Índia. Nessa obra, D. João de Castro considerou particularmente bela a orla costeira indiana percorrida. O terceiro trabalho, sob o título de Roteiro da Viagem que fizeram os Portugueses ao Mar Roxo, que constitui um exemplo de observação científica de inegável valor para a época, está datado de 1541, ano em que D. João de Castro acompanhou o Governador D. Estevão da Gama numa expedição de Goa ao Suez, no Mar Vermelho, onde tratou de explicar o fenómeno da cor roxa das águas.
D. João de Castro nunca abdicou da busca do conhecimento, empenhado em acrescentar novos saberes ao seu património intelectual, em descobrir e em investigar. Legou-nos uma obra que é ímpar no âmbito da Cosmografia e da Ciência Náutica, ilustrada pelos roteiros que elaborou.
Rigoroso e pragmático na aferição entre teoria e prática, sabemos que uma significativa parte do seu trabalho científico decorreu no cumprimento da missão que lhe fora conferida pela Coroa Portuguesa. No alvor do método científico, D. João de Castro desenvolveu intensas actividades de investigação, destacando-se, ao nível dos resultados obtidos, estudos tão diversos como a variação das agulhas, das correntes marítimas, da variação das longitudes e do regime dos ventos.
No campo da Ciência, os seus trabalhos reflectem bem a necessidade de associar o cálculo à experiência empírica, exactamente porque a articulação entre a observação e a razão, enquanto desafio emergente, era absolutamente essencial. Mas importa dizer que, consciente das limitações da própria Ciência, encarada em sentido lato, D. João de Castro reconheceu que o saber das Ciências é chegar à verdade, que não se confunde com a verdade absoluta. E esta última acepção é da maior importância, porque nos revela também aquilo que é a humildade do cientista perante a infinita complexidade do mundo natural.
Das várias obras atribuídas a D. João de Castro, já antes destacámos os três roteiros escritos durante a sua estadia na Índia: “de Lisboa a Goa” (1538), “de Goa a Diu” (1538-1539) e “do Mar Roxo” (1540), o mais conhecido e célebre dos três Roteiros de D. João de Castro.
Estes roteiros não seguiram o modelo tradicional do roteiro português, indo mais longe, ao incorporar a redacção de utilíssimas considerações de inegável interesse hidrográfico e náutico, com muitos pormenores que a generalidade dos roteiristas de então, preocupados em descrever sucintamente as viagens, por regra, omitia. Daí alvitrarmos que as três obras de D. João de Castro, tradicionalmente entendidas estritamente como “roteiros”, em vez disso, deveriam ser encaradas mais propriamente como “diários”.
Refira-se, ainda, o trabalho de D. João de Castro – “Uma Enformação que Dom João de Castro, governador da India, mandou a El-Rey Dom João 3º, sobre as demarcações da sua conquista & del Rey de Castella” –, uma espécie de relatório sobre o direito português à posse das Molucas, que era, como se sabe, um território também disputado por Espanha.
Por tudo isto, é da mais elementar justiça o reconhecimento de D. João de Castro, como um dos mais relevantes cidadãos de Portugal e da sua História. Não apenas como militar virtuoso em carácter e dignidade, que sempre serviu a Pátria sem nada exigir para seu próprio conforto, mas também na condição de importante cientista que, no seu tempo, fez saltar do “conhecimento sensível” para o “conhecimento inteligível”, muitos dos domínios e preocupações das Ciências, em suma, um digno exemplo de uma Escola de valores, de ideais e de trabalho, no adágio de vencer pelo próprio esforço.
Essa conjugação equilibrada da dupla condição e vertentes é incontornável e consensualmente valorizada por todos os historiadores que meditaram e continuam a investigar a época da expansão marítima portuguesa.
Em todos estes textos, aliava D. João de Castro um sagaz espírito de investigação e de interesse científico aos conhecimentos de cosmografia que possuía, o que o habilitava a integrar o quadro social e político marcado pelos ideais humanistas atribuíveis ao século XVI português. Com estes trabalhos e o desempenho em prol da boa realização da missão, o seu nome ficou, indelevelmente, ligado ao Oriente.
Excerto de um trabalho do Almirante Rebelo Duarte