D.João
de Castro, o Académico
Na
nossa memória colectiva perdura um homem de exemplar personalidade e
nobreza de carácter, com notável carreira militar e política, a
par da sua notória aptidão e gosto pela investigação científica,
traços que bem falta fazem na conturbada sociedade moderna e
conjuntura presente, a configurar a “anarquia madura” de que fala
o Prof. Adriano Moreira, não exclusiva de Portugal, mas que em nada
nos alivia da preocupação.
Em
relação à sua produção científica, datam de 1536 as primeiras
obras teóricas de D. João de Castro, nomeadamente o “Tratado da
Esfera, por Perguntas e Respostas a Modo de Diálogo”, e ainda um
outro pequeno tratado, sob o título “Da Geografia por Modo de
Diálogo”.
Durante
estes dois anos anteriores à partida para Goa, D. João de Castro
permaneceu na sua predilecta quinta localizada em Sintra, então
designada de Fonte d’El-Rei e posteriormente conhecida por Quinta
da Penha Verde, onde continuaria os seus estudos e receberia alguns
amigos mais próximos, como o Infante D. Luís, o Vedor da Fazenda,
D. António de Ataíde, o Conde da Castanheira e o negociante
italiano Lucas Giraldi. Para aí voltaria após o regresso em 1543,
refugiando-se na quinta herdada por morte de seu pai, em SET1528.
Ao
partir, pela primeira vez, para a Índia, em 1538, integrado na
Armada do seu cunhado, o Vice-Rei D. Garcia de Noronha, ao comando da
Grifo, uma das onze naus que a compunham, logo aproveitou a viagem
para escrever o primeiro de quatro interessantes roteiros, apenas
três chegados aos nossos dias.
Essa
obra inicial, o Roteiro de Lisboa a Goa, tinha como primeiro
objectivo o registo “(...) sob a forma de um cuidado diário de
navegação todas as indicações técnicas úteis para conhecer
melhor este tipo de viagem e contribuir para o seu aperfeiçoamento”.
Mal
chegado a Goa, logo integraria uma expedição a Diu, aquando do
primeiro cerco a essa cidade estratégica, aproveitando para escrever
um segundo trabalho, com dedicatória ao Infante D. Luís: o Roteiro
de Goa a Diu ou Roteiro da Costa da Índia. Nessa obra, D. João de
Castro considerou particularmente bela a orla costeira indiana
percorrida. O terceiro trabalho, sob o título de Roteiro da Viagem
que fizeram os Portugueses ao Mar Roxo, que constitui um exemplo de
observação científica de inegável valor para a época, está
datado de 1541, ano em que D. João de Castro acompanhou o Governador
D. Estevão da Gama numa expedição de Goa ao Suez, no Mar Vermelho,
onde tratou de explicar o fenómeno da cor roxa das águas.
D.
João de Castro nunca abdicou da busca do conhecimento, empenhado em
acrescentar novos saberes ao seu património intelectual, em
descobrir e em investigar. Legou-nos uma obra que é ímpar no âmbito
da Cosmografia e da Ciência Náutica, ilustrada pelos roteiros que
elaborou.
Rigoroso
e pragmático na aferição entre teoria e prática, sabemos que uma
significativa parte do seu trabalho científico decorreu no
cumprimento da missão que lhe fora conferida pela Coroa Portuguesa.
No alvor do método científico, D. João de Castro desenvolveu
intensas actividades de investigação, destacando-se, ao nível dos
resultados obtidos, estudos tão diversos como a variação das
agulhas, das correntes marítimas, da variação das longitudes e do
regime dos ventos.
No
campo da Ciência, os seus trabalhos reflectem bem a necessidade de
associar o cálculo à experiência empírica, exactamente porque a
articulação entre a observação e a razão, enquanto desafio
emergente, era absolutamente essencial. Mas importa dizer que,
consciente das limitações da própria Ciência, encarada em sentido
lato, D. João de Castro reconheceu que o saber das Ciências é
chegar à verdade, que não se confunde com a verdade absoluta. E
esta última acepção é da maior importância, porque nos revela
também aquilo que é a humildade do cientista perante a infinita
complexidade do mundo natural.
Das
várias obras atribuídas a D. João de Castro, já antes destacámos
os três roteiros escritos durante a sua estadia na Índia: “de
Lisboa a Goa” (1538), “de Goa a Diu” (1538-1539) e “do Mar
Roxo” (1540), o mais conhecido e célebre dos três Roteiros de D.
João de Castro.
Estes
roteiros não seguiram o modelo tradicional do roteiro português,
indo mais longe, ao incorporar a redacção de utilíssimas
considerações de inegável interesse hidrográfico e náutico, com
muitos pormenores que a generalidade dos roteiristas de então,
preocupados em descrever sucintamente as viagens, por regra, omitia.
Daí alvitrarmos que as três obras de D. João de Castro,
tradicionalmente entendidas estritamente como “roteiros”, em vez
disso, deveriam ser encaradas mais propriamente como “diários”.
Refira-se,
ainda, o trabalho de D. João de Castro – “Uma Enformação que
Dom João de Castro, governador da India, mandou a El-Rey Dom João
3º, sobre as demarcações da sua conquista & del Rey de
Castella” –, uma espécie de relatório sobre o direito português
à posse das Molucas, que era, como se sabe, um território também
disputado por Espanha.
Por
tudo isto, é da mais elementar justiça o reconhecimento de D. João
de Castro, como um dos mais relevantes cidadãos de Portugal e da sua
História. Não apenas como militar virtuoso em carácter e
dignidade, que sempre serviu a Pátria sem nada exigir para seu
próprio conforto, mas também na condição de importante cientista
que, no seu tempo, fez saltar do “conhecimento sensível” para o
“conhecimento inteligível”, muitos dos domínios e preocupações
das Ciências, em suma, um digno exemplo de uma Escola de valores, de
ideais e de trabalho, no adágio de vencer pelo próprio esforço.
Essa
conjugação equilibrada da dupla condição e vertentes é
incontornável e consensualmente valorizada por todos os
historiadores que meditaram e continuam a investigar a época da
expansão marítima portuguesa.
Em
todos estes textos, aliava D. João de Castro um sagaz espírito de
investigação e de interesse científico aos conhecimentos de
cosmografia que possuía, o que o habilitava a integrar o quadro
social e político marcado pelos ideais humanistas atribuíveis ao
século XVI português. Com
estes trabalhos e o desempenho em prol da boa realização da missão,
o seu nome ficou, indelevelmente, ligado ao Oriente.
Excerto
de um trabalho do Almirante Rebelo Duarte