Ainda
somos herdeiros das grandes polémicas de modernização ao longo do
século XVIII e das alternativas dramáticas que então se puseram no
século XIX, somos herdeiros do triunfo do positivismo na sua
expressão política e, tal como no século XIX, ainda coexiste uma
ideia mítica de Europa, a Europa de Prometeu, a Europa Cristã, a
Europa centro do mundo. Necessário, pois, se torna remontar a alguns
dos preconceitos políticos mais vulgares e atuais, que têm impedido
até a própria discussão relativamente à representação
política, que mingua sem remédio.
O
primeiro preconceito
é determinista e historicista. Entendem algumas ideologias que a
história tem um motor independente da ação humana pessoal, e com o
autoritarismo e a violência operaram rupturas visando impor uma
ordem pela força e pela demagogia, apresentando-se como síntese de
um processo histórico, cuja consciência a si mesma se refere como
última eminência de expressão social.
O
golpe Republicano de 5 de Outubro de 1910 em Potugal é disto
exemplo, pois havia mais liberdade de expressão e uma democracia
mais ampla em comparação com o novo regime republicano. O segundo
preconceito está na relação que se estabelece entre a noção de
progresso e modernização com uma ideologia ou com uma forma
política. No contexto nacional se promoveu constantemente o
desenvolvimento social e humano pelas monarquias, sem exceção,
independentemente das inclinações ideológicas de seu contexto,
humanista e empiricista, absolutista ou liberal. A finalidade
política que é o desenvolvimento humano (educação, saúde,
empregabilidade) não se pode confundir com uma forma de regime, mas
com a participação social que o regime permite.
Os
positivistas, os republicanos e todos os progressitas do século XIX
pensavam que
Misericórdias, os Hospitais, os Teatros, mas também o ensino
obrigatório, as estradas, o telégrafo, os comboios, a luz
eléctrica, a livre expressão e a circulação de ideias, são
acolhimentos e promoções de uma monarquia atuante e acolhedora do
sentido do desenvolvimento social, traço que sempre pode
confirmar-se pelas instituições criadas no antigo como no novo
regime, antes e a partir de 1822, em consonância com as inquietações
de época e com as dinâmicas europeias.
Mais
humanistas, as monarquias sempre perseguiram esta finalidade última
política, o desenvolvimento humano. Foram desde então elaboradas a
introdução de novas técnicas, produções, saberes, a alteração
relativa a estilos de vida com melhor saúde, higiene e projectos de
vida em aberto, mobilidade social, aumento da literacia, que são
produtos da ação humana a partir das instituições políticas,
estas profundas alterações não são uma inevitabilidade.
Direitos,
liberdades e garantias estavam acauteladas nas várias constituições
monárquicas do século XIX (de 1822, 1826 e de 1838), sobretudo na
Constituição que estava em vigor no dia 5 de Outubro de 1910, como
por exemplo, o princípio da igualdade perante a lei (art. 10º CMP
de 1838, § 12º do art. 145º CC de 1826 e art. 9º CMP de 1822), da
separação de poderes (art. 35º CMP de 1838, art. 10º CC de 1826 e
art. 30º CMP de 1822), a liberdade de opinião e de imprensa, “sem
dependência de censura” (art. 13º CMP de 1838, § 3º do art.
145º CC de 1826 e arts. 7º e 8º CMP de 1822), a possibilidade de
eleições de 3 em 3 anos ou de 4 em 4 anos ou ainda de 2 em 2 anos,
para a Câmara dos Deputados (art. 53º CMP de 1838, arts. 17º e 34º
CC de 1826 e art. 41º CMP de 1822), o direito de resistência “a
qualquer ordem que, manifestamente, violar as garantias individuais”
(art. 25º CMP de 1838), a liberdade de associação política e de
reunião (art. 14º CMP de 1838), pois existiam partidos políticos,
entre os quais o próprio partido republicano, funcionando
completamente as instituições democráticas. De igual modo as
Constituições Monárquicas consagravam que a soberania reside na
Nação, “da qual emanam todos os poderes políticos” (art. 33º
CMP de 1838 e art. 26º CMP) e que “a instrução primária é
gratuita” (art. 28º nº 1 CMP de 1838 e § 30 do art. 145º CC de
1826), e “o ensino público é livre a todos os cidadãos” (art.
29º CMP de 1838, art. 237º CMP de 1822).1
As
ideologias que
cindiram o passado do futuro serviram de suporte a uma abordagem
revolucionária ao poder. A tentação de reduzir a complexidade da
nossa vivência social a uma equação simples sempre produziu mais
males que benefícios. E
as presentes dificuldades de representação política resultam
sobretudo de um discurso que não tem conseguido ser suportado pela
realidade. É verdade que tem havido nos últimos anos, desde 2008,
durante a última crise financeira internacional, um ajuste entre
discurso e realidades económicas, mas ainda se fica longe do ajuste
necessário para com as realidades sociais. As circunstâncias
presentes apelam ao retorno do político para o primeiro plano
discursivo onde sempre podemos encontrar motivação, maior claridade
acerca dos objetivos das várias instituições do Estado, e
introduzir uma instância que por sua própria natureza
representativa, e independente, melhor concita, acolhe e evidencia os
consensos democráticos. Se
têm sido continuamente solicitadas à sociedade mudanças de
comportamento, penso também haver ficado clara a necessidade de
construir uma renovação dentro do próprio sistema político. Se a
iniciativa política solicita mudanças de comportamento à
sociedade, a sociedade também clama por um profundo câmbio
político.