sábado, 10 de setembro de 2016

Da Poética dos Mares III


in JEM


Boiar o sonho nesta nação 
única de memória do mar

Depois de um prolongado fenecer das práticas económicas e sociais dos portugueses relativamente às suas atividades marítimas, emerge novamente no pensamento estratégico nacional o mar como desígnio de desenvolvimento socioeconómico, elemento fulcral da nossa geoestratégia do mar, desde 2006, isto é, como fonte de crescimento económico, como meio desenvolvimento social adequado ao País. Poucos anos depois, as cidades viram-se para o mar com seus passeios marítimos, a tecnologia desenvolve-se, começa o direcionamento do investimento para este amplo setor, ganham-se competências de negócio e profissionalização, aumenta a atenção dada pela governança, e a Economia do Mar torna-se visivelmente de social importância relativamente às suas potencialidades para o emprego, quer pela sua dimensão quer pelas competências requeridas, transversais a todos os tipos de qualificação profissional.
O mar identifica-nos como País distinto no seio de uma globalização tendencialmente padronizadora e por suas potencialidades socioeconómicas e culturais podemos encontrar a dimensão, a escala e a profundidade que falta ao território. Contudo, haverá também que gerar esse fator grandeza que não existe na maioria da mentalidade portuguesa. Se já são ensaiados os primeiros passos para a maritimidade da nossa economia, regenerando social e economicamente a nossa imensa varanda oceânica com excelência, monitorizando os produtos e os métodos, ainda falta uma maior difusão tanto da informação das oportunidades (de que o Jornal da Economia do Mar e a recentemente iniciada série documental da RTP «Regresso ao Mar» são exemplo) como também carece a maior difusão das atividades culturais (artísticas, de lazer e desportivas) relacionadas com o mar.
A poesia, geração após geração, não só tem elaborado a leitura do mar nas várias dimensões em que se tem vindo a relacionar com a vida portuguesa, mas também, no seu campo próprio de conhecimento tem conferido e tem acentuado a maritimidade portuguesa, mesmo quando esta teve nas recentes décadas um recuo tremendo nas áreas económicas. A poesia, atividade reflexiva e interpretativa, nunca deixou diretamente de descobrir o mar na identidade portuguesa pela sua linguagem intemporal. O mar é um nosso histórico, por várias razões, não apenas geográficas, culturais e sociais, devido à sua proximidade, mas também, sobretudo, pelo adquirido histórico, na medida em que assinalámos a entrada do mundo europeu numa nova época, enquanto se passou a apresentar o conhecimento do mundo à escala global, encetámos a época dos avanços científicos e tecnológicos europeus que perdurou cerca de quinhentos anos, e a terra voltou a ficar redonda. A rememoração da nossa história permite algumas afirmações constantes na nossa consciência. Abrimos o mar:

(…) fomos abrindo aqueles mares,
Que geração alguma não abriu (...)
Camões (Lusíadas, V, 1572)

Ou, numa outra versão que perdura nos atuais manuais escolares,

(...) Que era dantes o mar? Um quarto escuro
Onde os meninos tinham medo de ir.
Agora o mar é livre e é seguro
E foi um português que o foi abrir.
Afonso Lopes Vieira (Guimarães Ed., 1966-1940)

Abrir é o verbo comum a estes excertos, mas uma abertura que revela o âmago da humana aventura no seu caminho pelo apenas provável. Todavia, além da elevação contínua e sistemática da sofisticação, além da inovação e domínio técnico, que não foram de pouca monta, essa abertura não foi realizada sem sacrifício:

(…) o corpo morto dum herói, primeiro
Cruzado da unidade deste mundo,
No dorso frio de uma onda irada,

Mandou aos mortos, com a mão na espada,
Boiar o sonho, que não fosse ao fundo.
Miguel Torga (Gráfica Coimbra, 1995-1952/1965)

E foi esta afirmação além do individual, esta tenacidade além do limite humano da mortalidade, incluíndo o projeto pessoal num desígnio transgeracional, numa marca institucional ou nacional, é ainda hoje o único sentido que nos pode orientar a realizar caminho além das possibilidades já configuradas, insistindo em memória e progresso.
As possibilidades ou oportunidades abrem como fecham-se e são contrárias por natureza aos ismos ou à estabilização. Apenas os objetivos políticos nacionais e o concomitante desenvolvimento de competências permanecem como pontes ao mundo futuro. No dizer do poeta, não há alma mais poderosa senão aquela que se constitui pela procura, processo cujo desfecho é sempre representado num mundo novo:

No mundo dos que gritam
Há uma alma mais poderosa
Mais chorada pelo povo
E saudosa.
A sua arte é a busca do mundo novo.(...)
Miguel Torga (Gráfica Coimbra, 1995-1952/1965)

E esta procura do novo, humana realização na incerteza do possível, fosse realizada no passado ou a que realizamos diária e constantemente, é para nós historicamente simbolizada pela viagem no Tenebroso. Tratou-se e trata-se ainda de unir a certeza do já dado ao mundo que nos está em falta, o conhecido ao desconhecido, pois da certeza pela incerteza é feito o caminho da aventura humana:

(...) Era o resto do mundo que faltava
(Porque faltava mundo!)
E o agudo perfil mais se aguçava,
E o mar jurava cada vez mais fundo.

Sagres sagrou então a descoberta
Por descobrir:
As duas margens da certeza incerta
Teriam de se unir!
Miguel Torga (Gráfica Coimbra, 1995-1952/1965)

Historicamente e ainda hoje, para nós, não fora o mar, pouco mais haveria a continuar:


(...) Não fora o mar
e o longo apelo, o canto da sereia,
apenas ilusão, miragem,
breve canção, passo breve na areia,
desejo balbuciante de viagem.
Fernanda de Castro (Império, 1941)

A série de acontecimentos históricos só toma sentido por interpretações, ações e consequências além do seu presente factual. O Pinhal de Leiria é aumentado por D.Dinis (1279-1325) já com intenção marítima, depois de plantado por D.Sancho II e D.Afonso III. Este aumento tornou possível a capacidade - pioneira - de se adquirir gratuitamente a madeira para a construção de navios de grande porte, de modo a fazer aumentar as trocas comerciais com o exterior, contudo, sendo o pinhal sempre renovado na medida dos cortes então efetuados. Nesta abertura da possibilidade marítima, tão cedo elaborada em relação à Europa, fomos também os primeiros seguradores marítimos do mundo, com a Bolsa de Mercadores (1293) com D. Dinis e depois com a associação mutualista Companhia das Naus (1380) no tempo de D. Fernando (1367-1383). A inovação técnica acompanhará também a construção naval, exemplo disto é a Caravela Redonda, resultado da informação recolhida pelos portugueses com objetivos de melhoramento das suas possibilidades de marinharia face aos ventos que foram encontrando. Em 1864 D. Luís criou o Domínio Público Marítimo (DPM). Estadista e homem de ciência, há 150 anos teve o sonho de tornar Portugal num HUB dos transportes marítimos europeus, desenvolvendo uma rede ferroviária desde o coração da Europa até aos portos portugueses, e uma frota que assegurasse a distribuição de pessoas e mercadorias para África e América do Sul.
Não bastasse estas e outras vanguardas portuguesas relativamente aos assuntos do mar, a nossa relação com o mar elaborou contributos civilizacionais singulares, socioeconómicos e culturais, e justamente nos atribuem a primeira onda da globalização, na expressão indiana, a era gâmica. É, pois, nesta dimensão consciente e histórica que a poesia em Portugal, quando se liga ao mar acontece de forma única, como seu próprio símbolo e metáfora. A evidenciação desta pertença, marítima e poética, adquire na expressão de Natália Correia uma interpretação magistral:

Sou filha de marinheiros
pelo mar que também quis.
Pela linha da poesia
sou neta de D.Dinis.(...)
Natália Correia, (Dom Quixote, 2013-1954)

Pelo mar que também quis não pode ser uma expressão colhida apenas literalmente como a sua viagem voluntária efetuada de Ponta Delgada (Açores) a Lisboa, mas de modo a procurar a plenitude metafórica da poesia terá de ser esse mar que também quis, o mar que é abertura e horizonte em que se elaboram as humanas navegações por um desconhecido a descobrir. E nisto, continua a sobressair um símbolo inconfundivelmente de valor universal, a da alma em constante procura de um mundo novo. Como diz Miguel Torga, essa alma mais poderosa, que abre as possibilidades novas.
Saibamos ultrapassar o tempo conjuntural por determinação política, institucional e nacional, e construir incessante e sistematicamente uma Economia do Mar, como fizemos Boiar o sonho, que não fosse ao fundo. Assim, na nossa evidência histórica, seremos como fomos, na vanguarda e na identificação coletiva,


(...) uma nação única de memória do mar,
que não responde senão em nós. (…)
Fiama Hasse Pais Brandão (Relógio D'Água, 2000).