Foto de Fabian Stamate - Nazaré, Portugal |
O sons, as imagens e as emoções provocadas pela tempestade marítima são constantes na transversalidade da poesia através das épocas. A sonoridade da tempestade, o rugido, o bramar, o ranger, o estrondo da trovoada, o crepitar e o traçado dos relâmpagos, as imagens, as torres de nuvens espessas, as montanhas e serras de ondas avassaladoras, a negrura noturna, o vento furioso, caraterizam invariavelmente a descrição poética da tenebrosa tempestade no mar. De modo geral a tempestade marítima é uma batalha entre os elementos do ar, da água e da luz, que parece intentar destruir o próprio mundo:
(…)
Agora sobre as nuvens os
subiam,
As
ondas de Netuno furibundo;
Agora
a ver parece que desciam
As
íntimas entranhas do Profundo.
Noto,
Austro, Bóreas, Aquilo queriam
Arruinar
a máquina do mundo (…)
ou:
(...)
Como em fera
batalha, os Elementos
A
vingarem-se huns de outros se resolvem,
Que
agoas contra agoas, ventos contra ventos,
O
mar com o Ceo, o Ceo com o mar involvem.
Com
nuvẽs, & relampagos violentos
As
areas do fundo se revolvem (…)
ou ainda
(...)
Levanta
lá no céu furiosas ondas;
Austro
bramando corre ali com fúria,(...)
Rompe-se
por mil partes o céu, e arde
Em
ligeiro, apressado, vivo fogo.
Um
rugido espantoso vai correndo
Desde
o Antárctico Pólo ao seu oposto.
Arremessam-se
lanças pelos ares
De
congelada pedra em água envolta;
Com
espantoso ímpeto, e rasgadas
As
densas negras nuvens raios cospem
(...)
Neste
combate das forças impessoais encontra-se inevitavelmente o homem
envolvido em medo e foge toda a natureza viva sob o poder destruidor
dos elementos embravecidos:
As
Alcióneas aves triste canto
Junto
da costa brava levantaram,
Lembrando-se
do seu passado pranto,
Que
as furiosas águas lhe causaram.
Os
delfins enamorados entretanto
Lá
nas covas marítimas entraram,
Fugindo
à tempestade e ventos duros,
Que
nem no fundo os deixa estar seguros.
Trata-se
de um cenário terrível, transcendente às forças humanas. Passar
nessa paisagem revolta em fúria é abeirar-se da morte e brevemente
dá-la como certeza. A fragilidade do humano perante a morte torna-se
evidente. O seu soçobrar ou a sua sobrevivência são suas questões
permanentes durante a tempestade. Os elementos surgem desalinhados
daquilo que é o próprio e possível do viver humano. E o seu saber,
a sua perícia, não é garantia de salvação. Na tempestade
marítima «nas águas tempestuosas e letais (…) perdem, engolem e
matam» (J.Cândido
Martins)
e apenas há abrigo na suma fragilidade do navio envolto em forças
que o transcendem e na arte da navegação, mas só enquanto assiste
tal possibilidade sempre pronta a desfazer-se pela guerra elemental
da tempestade.
O vento
endoidecido, a chuva violenta, o mar encapelado, o fulgor estrondoso
dos relâmpagos, suas sonoridades, em que tudo é surpreendentemente
grandioso e avassalador, constituem um extremo do possível, vive-se
uma exceção da existência, mais além do que a natureza tem de ser
para que o homem seja possível. E, no mar, o abrigo perante os
elementos é muito mais frágil, propiciando o espanto e o terror
perante a realidade de que a sobrevida humana de si mesma pouco
dependa – como se pode viver num cenário além da força humana?
Quando
(…)
os ventos que
lutavam
Como
touros indómitos bramando,
Mais
e mais a tormenta acrescentavam (...)
Relâmpados
medonhos não cessavam,
Feros
trovões, que vêm representando
Cair
o céu dos eixos sobre a terra,
Consigo
os elementos terem guerra.(...)
ao
homem cabe seguir sua arte e ciência, a navegação, porém, à
vista das Parcas que tecem talvez o final abrupto da tecedura de
nossos humanos dias. Eis
quatro breves descrições de uma desordenada natureza antagonista da
possibilidade da vida humana:
Sibila
o vento: os torreões de nuvens
Pesam nos densos ares:
Ruge ao largo a procela, e encurva as ondas
Pela extensão dos mares:
A imensa vaga ao longe vem correndo
Em seu terror envolta;
E, dentre as sombras, rápidas centelhas
A tempestade solta.(...)
Pesam nos densos ares:
Ruge ao largo a procela, e encurva as ondas
Pela extensão dos mares:
A imensa vaga ao longe vem correndo
Em seu terror envolta;
E, dentre as sombras, rápidas centelhas
A tempestade solta.(...)
Ou, vinda
de uma época mais distante:
(...)
Eis manso e manso as
nuvens se entumecem,
Eis
o líquido pêso
Rompe
os enormes carregados bôjos, (...)
Rebentam
furacões, flamejam raios,
O
estrondoso trovão no céu rebrama,
(...)
a procela [tormenta]
horríssona recresce,
Tingem
sombras do inferno os véus da noite
Que
o relâmpago retalha:
Braveja
o mar, aos astros se remontam
Serras
e serras da fervente espuma;
Carrancudos
tufões arrebatados
Dobrando
a força, a raiva, lutam, berram
E
revolvem do pélago [abismo]
as entranhas;
(…)
Com maior
distanciação temporal também apresentamos esta versão da
tempestade:
Cobre-se
o céu de grossas negras nuvens,
Os ventos mais e mais cada hora crescem,
Já se escurece o céu, já com soberba
Inchadas grossas ondas se levantam.
A nau começa já passar trabalho,
Já começa gemer, e em tal afronta
O apito soa, brada o mestre, acodem
Com presteza varões no mar expertos.
Põe-se o fero Vulturno junto ao cabo,
Levanta lá no céu furiosas ondas;
Austro bramando corre ali com fúria,
Dando um balanço à nau que quase a rende,
Vem com grande furor Bóreas raivoso,
Comete por davante, o passo impide,
Encontra as grandes velas, e, por força,
Ao mastro as pega e a nau atrás empuxa:
Rompe-se por mil partes o céu, e arde
Em ligeiro, apressado, vivo fogo.
Um rugido espantoso vai correndo
Desde o Antárctico Pólo ao seu oposto.
Arremessam-se lanças pelos ares
De congelada pedra em água envolta;
Com espantoso ímpeto, e rasgadas
As densas negras nuvens raios cospem:
De um golpe as velas vêm todas abaixo.
Jerónimo Corte-Real (Typografia Rollandiana,1783-1574)
Os ventos mais e mais cada hora crescem,
Já se escurece o céu, já com soberba
Inchadas grossas ondas se levantam.
A nau começa já passar trabalho,
Já começa gemer, e em tal afronta
O apito soa, brada o mestre, acodem
Com presteza varões no mar expertos.
Põe-se o fero Vulturno junto ao cabo,
Levanta lá no céu furiosas ondas;
Austro bramando corre ali com fúria,
Dando um balanço à nau que quase a rende,
Vem com grande furor Bóreas raivoso,
Comete por davante, o passo impide,
Encontra as grandes velas, e, por força,
Ao mastro as pega e a nau atrás empuxa:
Rompe-se por mil partes o céu, e arde
Em ligeiro, apressado, vivo fogo.
Um rugido espantoso vai correndo
Desde o Antárctico Pólo ao seu oposto.
Arremessam-se lanças pelos ares
De congelada pedra em água envolta;
Com espantoso ímpeto, e rasgadas
As densas negras nuvens raios cospem:
De um golpe as velas vêm todas abaixo.
Jerónimo Corte-Real (Typografia Rollandiana,1783-1574)
São
constantes as fórmulas da descrição! Sinteticamente, é um
desordenado
inferno que se representa na tempestade (Brás
Garcia Mascarenhas,
1699), um caos, uma desordem incontida que ultrapassa o poder de
escolha humano, eventualmente sobrepondo-se à arte de navegar:
Eis
o mestre, que olhando os ares anda,
O
apito toca: acordam, despertando,
Os
marinheiros dũa e doutra banda,
E,
porque o vento vinha refrescando,
Os
traquetes das gáveas tomar manda.
–
«Alerta (disse) estai, que o
vento crece
Daquela
nuvem negra que aparece!»
Não
eram os traquetes bem tomados,
Quando
dá a grande e súbita procela.
–
«Amaina (disse o mestre a
grandes brados),
Amaina
(disse), amaina a grande vela!»
Não
esperam os ventos indinados
Que
amainassem, mas, juntos dando nela,
Em
pedaços a fazem cum ruído
Que
o Mundo pareceu ser destruído!
Podemos
verificar a pregnância das noções que a tempestade marítima nos
provoca, primeiro, a semelhança intemporal nas descrições, a
tempestade é um combate de gigantes, entre elementos naturais:
forças desumanas, segundo, o olhar que a tempestade marítima
devolve sobre nós acerca de nossa fragilidade em meio tão
agressivo, terceiro, as analogias que propicia relativamente à nossa
vivência em subjetividade (como o mar nos embravecemos, por exemplo,
ultrapassando a ordem que o homem tem de trilhar devido à sua
inteligência e necessidade de profícua sociabilidade).
Se
permanece bem caraterizada a fragilidade humana - e nisto a nossa
dependência última do que nos é transcendente -, se permanece
também entre os terrores a necessidade de segurar o medo que nessas
condições desponta, querendo comandar a razão – se algum espaço
para ela há – será então esta a sua mais forte garantia, mas se,
contudo, para ela não há espaço nem arte que valha, contudo, então
apenas a esperança poderá resistir:
(...)
Fragil
taboinha, que o bater das ondas
Póde
num so momento
Fazer
em mil pedaços!
Ai
de mim! Trinta vezes no horizonte
O
pae das luzes despontou radioso,
E
co'a tocha brilhante
A
meus cançados olhos
Nada
mais amostrou que o quadro imenso
De
soledade infinda, – os ceus
e os máres! (...)
Ainda
no seguimento do disposto por Almeida Garrett relativamente à
solidão humana na sua fragilidade, de onde brota a esperança sobre
todas as dificuldades, a tempestade no mar ajuda também a reconhecer
outras batalhas travadas na subjetividade humana, interiormente. Esta
analogia das tempestades com a subjetividade humana foram também
tratadas por Francisco
Pina de Mello e Fernando
Rodrigues Lobo 'Soropita':
No
mar em que de novo amor me guia,
O
mais seguro porto e dar a costa;
Aonde
todos se perdem, ai esta posta
Minha
salvação, ai me salvaria.
So
fe me há-de salvar nesta porfia
Do
vento, que contrario vem de aposta;
E
pois sua mor perda e dar a costa
Comigo,
eu com costa me queria.
Que
vai ja o querer, aonde a ventura
Criou
tão desigual merecimento?
Valha-me
pura fe, vontade pura!
Valha-me
navegar meu pensamento
Com
tal estrela, cuja formosura
Abranda
o duro mar de meu tormento.
Fernão
Rodrigues Lobo 'Soropita'
(Campo das Letras, 2007)
e em
Francisco Pina de Mello:
Que
bravo o mar se ve! Como se ensaia
Na
furia e contra os ares se rebela!
Como
se enrola! Como se encapela!
Parece
quer sair da sua raia.
Mas
tambem que inflexivel, que constante
Aquela
penha esta a forca dura
De
tanto assalto e horror perseverante!
O
empolado mar, penha segura,
Sois
a imagem mais propria e semelhante
De
meu fado e da minha desventura.
Francisco
Pina de Mello
(Off. de Joseph Antunes da Sylva, 1727, 2ed)
Já em
António Ferreira é considerada como uma demasia os arrojos humanos
pelos oceanos, numa fala que é semelhante à do Velho do Restelo, a
sensatez e o acometer feitos estão na balança, ganhando a primeira:
(…)
meu irmão,
metade
da
minha alma (...)
[que]
tornes vivo, e
são
do
fogo, e tempestade
a
que se aventurou c'o esprito ousado.
Vença
à dura fortuna a boa tenção.
Quem
cometeu primeiro
ao
bravo mar num fraco pau a vida
de
duro enzinho, ou tresdobrado ferro
tinha o peito, ou ligeiro
juízo,
ou sua alma lh'era aborrecida.
Dino
de morte cruel no seu mesmo erro.
Esprito
furioso
que
não temeu o pego alto revolvido
(entregue
aos ventos, posto todo em sorte)
do
sempre tempestuoso
Áfrico,
nem os vaus cegos, e o temido
Cila
infamado já com tanta morte!
A
que mal houve medo
quem
os monstros no mar, que vão nadando,
com
secos olhos viu? Que o céu cuberto
de
triste noite, e quedo
sem
defensão, c'o corpo só esperando
está
a morte cruel, que tem tão perto?
Se
Deus assi apartou
com
suma providência o mar da terra,
que
a nós, os homens, deu por natureza,
como
houve homem que ousou
abrir
por mar caminho mais a guerra
qu'a
paz, e a morte mais, roubo e crueza?
Que
cousas não cometes,
ousado
esprito humano, em mar, e em fogo
contra
ti só diligente, e ingenioso?
Que
já te não prometes,
des
qu'o medo perdeste à morte, e em jogo
tens
o que de si foi sempre espantoso?
Um
o céu cometeu;
outro
o ar vão experimentou com penas
não
dadas a homem; outro o mar reparte
que
por força rompeu.
Senhor,
que tudo vês, que tudo ordenas,
pera
Ti só chegarmos dá-nos arte.
António
Ferreira, «A ûa nau d'armada em que ia seu irmão Garcia Fróis»
Poemas
Lusitanos,
1598
Todavia,
não são apenas formados de ousadia temerária tais empreendimentos
marítimos, pois as duras experiências e a morte iminente podem
transmutar os terrores na revelação de um valor imortal para o
homem, enquanto este se realiza no trabalho em meio das dificuldades,
mostrando firmeza no Amor que dedica à sua função, ao seu
trabalho, apesar das contrariedades com fatais perfis. Camões
proporciona nas suas Rimas,
pela fala do Capitão Themioscles, o ganho de uma afinação imortal
para o homem que permanece na sua função ante sua iminente morte -
«vendo
a morte diante de mim»
-, enquanto o seu objetivo ainda está longe, como se dissesse: feliz
o homem que a morte o surpreende trabalhando. Só nestas extremas
condições é apurado o Amor: «Ali
Amor mostrando-se possante / e
que por nenhum modo não fugia, / –
mas quanto mais trabalho, mais constante – ».
Consideremos o excerto do poema que expõe mais completamente esta
ideia:
(...)
As cordas, co ruído, assoviavam;
os
marinheiros, já desesperados,
com
gritos para o Céu o ar coalhavam.
Os
raios por Vulcano fabricados
vibrava
o fero e áspero Tonante,
tremendo
os Pólos ambos, de assombrados!
Ali
Amor mostrando-se possante
e
que por nenhum modo não fugia,
– mas
quanto mais trabalho, mais constante – ,
vendo
a morte diante de mim, dizia:
«Se
algûa hora, Senhora, vos lembrasse,
nada
do que passei me lembraria».
Enfim,
nunca houve cousa que mudasse
o
firme Amor do intrínseco daquele
em
cujo peito ûa vez de siso entrasse.
Ûa
cousa, Senhor, por certo asssele:
que
nunca Amor se afina nem se apura,
enquanto
está presente a causa dele.(...)
(excerto
da fala do Capitão Themioscles) 1953-1595
publicado originalmente no Jornal da Economia do Mar