A tertúlia começava ao jantar, na Mimosa do Chiado, às
quintas-feiras. Chegávamos, íamo-nos acercando das mesas já dispostas para nós,
e de cumprimentos calorosos eram recebidos os que iam surgindo, mas pouco
esperávamos. Quem não pudera vir previamente fazia saber de sua ausência. As
novidades editoriais, especialmente as que diziam respeito à cultura portuguesa
e à lusofonia, eram geralmente a peça de abertura. A leitura de quem já se
havia aproximado de sua análise era logo partilhada. Outras novidades, futuros
eventos ou participações dos membros do grupo, notícias do foro político
relativas à cultura, também eram de permanente interesse, assunto este em que
António Quadros mostrava particular interesse. E conversava-se variamente,
evocando memórias de que a geração mais nova, da década de 60, absorvia e
indagava. Por vezes liam-se ou davam-se a ler poemas inéditos, ou alguns
rememorados, que haviam resultado especialmente interessantes para a vida
circunstancial de alguém entre os participantes. O Elísio e o João liam
singularmente bem, mas também me deliciei com Barrilaro Ruas, apesar dele
muito dar a ler. Depois, inevitavelmente, vinham as
experiências de vida partilhadas com esses e outros autores, que haviam sido do
conhecimento ou da amizade dos convivas mais idosos. Era um privilégio ouvir
essas experiências de vida não registadas por escrito. Quanta riqueza de vida
foi deste modo partilhada além de uma geração e aquém das obras escritas!
Foi através de um colega estudante de Filosofia na UCP, o
Elísio Gala, que encontrei esta tertúlia, que nascera no Porto, com Leonardo
Coimbra, em 1926. Assim, convivi com um grupo muito diversificado de pessoas
com interesse filosófico. Encontrei aí um passado, uma história, referências,
pessoas com obra que desde o início do século XX realizaram contribuições
culturais relevantes, na sua obra teórica, ensaística e política, mas também na
didática, na poética e no romance. Todavia, deste plural conjunto de pessoas
emergia constantemente a memória da Pátria, nos filósofos, cientistas,
historiadores, artistas, literatos, vozes teóricas que amassavam passado,
presente e futuro; vozes que proporcionavam uma perspetiva histórica alargada,
os princípios e as lutas em seus cenários epocais, as constantes humanas e as
singularidades pessoais, dispondo-se em obras para nossa reinterpretação.
Se é sempre função das gerações mais adiantadas um nexo de
unidade, a equação do passado ao presente para o futuro, ao modo como era
praticada, era por si mesma constituída de valor, na funda experiência de
pessoa a pessoa, na sensibilidade ao outro, na inteligência com profundidades e
abordagens diferenciadas, na sua dedicação objetivada em obra. Estas
competências, que se estimulam e são próprias numa Academia, formavam uma
Escola no seu sentido mais amplo, espaço para a dedicação reflexiva e
interativa, mais do que esteio ou projeção para alguma específica e pessoal
ambição, política ou de cariz filosófico, em parte devido à variedade de
personagens, percursos e incidências que a compunham, em parte devido a serem
estas reuniões um estímulo para a obra a desenvolver, pessoal e literária, e
não um fim. A diversidade pessoal era coisa sagrada, mas também o era a
partilha e a exigência de fundamentação, perante uma pluralidade de ideias e
abordagens, na polidez do tratamento, na elevação das nossas responsabilidades
como agentes culturais e, também, no amor a Portugal.
O gosto e filosofia desse Grupo incidia especialmente na
cultura portuguesa, do passado e do presente, no sentido de ela ser, mais do
que um importante recurso para a erudição, elemento imprescindível ao
autoconhecimento e motivo de reinterpretação da realidade social, económica e
política; pois não há outro portal para aceder ao presente, pela sua diferença ou
semelhança, senão a memória, nos arquivos, nos livros, na experiência de vida
das gerações passadas.
Contudo, não ficávamos pela tertúlia. Depois de jantar
passávamos ao IADE para o colóquio aprazado. António Quadros, também presente na tertúlia do
Grupo da Filosofia Portuguesa, acolhia-nos numa sala ampla. Um convidado, ou um
dos que estivera na tertúlia, iria desenvolver uma interpretação filosófica.
Por vezes, além de um público frequente e quase permanente, chegavam a estes
colóquios várias pessoas, também eles dedicados à cultura portuguesa e à
filosofia que se haviam deslocado, por exemplo, de Estremoz e do Porto
O orador ia para o estrado, sem mesa, e de pé dissertava, ou
melhor, como nessa tradição se manteve, orava. Mas quando começava o diálogo
logo a sala se ia tornando elítica, ativada a conversação entre uns e outros e
com o orador. Não eram esses colóquios fáceis, com um público meramente
expectante, mas sempre se constituía em estímulo, para que o intérprete e
orador fizesse o seu caminho, tendo por início e não como ponto de chegada a
sua mesma exposição, pois a relação com a atividade interrogativa, reflexiva e
crítica dos participantes era intensa, viva e muito participada, vigorosa a
questionação, mas não necessariamente severa.
Era este espaço de acolhimento, também um espaço de
construção e de afirmação num pensamento exigente, na questionação à
terminologia aplicada, quanto ao limite de sentido proposto na interpretação de
um autor ou de uma obra em análise, quanto à pertinência das referências aduzidas
em justaposição ou contiguidade com outros autores e quanto ao esclarecimento
de pressupostos teóricos.
A sociedade portuguesa vivenciava uma intensa mudança
cultural nessa época, com as diligências políticas de conformação normativa
com a então CEE. Uma mudança que pode também representar-se pela construção de
um discurso económico renovado, pela independência dos meios de comunicação
social, que se tornaram mais apelativos, pela crescente oferta e participação
do público em eventos culturais. A oportunidade de intervir politicamente, do
ponto de vista de um jovem nos anos oitenta, estava na adesão a um partido
político, na participação em associações de carácter solidário ou na
participação em várias instituições culturais, onde inseri algumas contribuições,
nas associações académicas, numa revista elaborada com o Elísio Gala, os
“Cadernos de Filosofia”, para difusão na Universidade, e na participação
ativa em colóquios e conferências públicas.
Numa dessas conferências, algures na baixa de Lisboa, o tema
era a política cultural portuguesa. Um dos palestrantes fora Secretário de
Estado para a Cultura, de quem positivamente não me recordo o nome, e António
Quadros. O primeiro advogava como meio de apoio às atividades culturais
criar-se uma expetativa melhorada às receitas do Orçamento de Estado, por sua
vez, mais incisivo no assunto e menos otimista perante aquela tese, António
Quadros dissertou acerca da quase ausência dos autores portugueses nos
compêndios escolares, fossem eles de História ou de Ciências, um problema
político e de interdisciplinaridade. Importa salientar que esta sua intenção
viria a objetivar-se, se bem que ainda ficasse muito longe do que poderia ser.
Intervim após as conferências, durante o debate, na perspetiva de António
Quadros, especificando no que dizia respeito à disciplina de Filosofia.
Salientando o facto de que os manuais escolares de filosofia
eram escassos ou omissos em relação aos autores portugueses, quer anteriormente
à Europa humanista, na Europa humanista e daí em diante. Entendia como ainda
entendo, expondo agora com maior clareza, que com cientistas, literatos e
artistas dar-se-ia a pensar filosofia em melhor modo do que ao género a que nos
temos habituado, malogradamente. Pois em toda a nossa literatura portuguesa e
lusófona se encontram peças de extraordinário interesse filosófico, do passado
e do presente, como estímulo à reflexão e à ação cívica, para uma reflexão
situada e universalizante, para o pensamento aplicado na questionação ética,
estética, social, económica e política. Não se tratava apenas de substituir a
aridez dos esquemas cronológicos, das doutrinas e textos apenas para iniciados,
que usualmente expunham os manuais, mas de amplificar as virtudes pedagógicas
do registo literário das fontes, científicas, políticas, jurídicas, poéticas.
Estou lembrado de um manual de filosofia que, logo na sua primeira frase, longa
e recurva, continha termos rigorosamente inultrapassáveis para o aluno,
supostamente o seu mais direto leitor. Quanto não ganharia a cultura lusófona
se, com os seus autores, os aplicássemos à iniciação de pensamento filosófico.
Assim iniciaríamos os jovens ao discurso filosófico reconhecendo-o na
elaboração vívida da língua, e não com textos quase herméticos ao estudante,
obras sumariadas e doutrinas esquematizadas. Não querendo com isto dizer que
nos desviemos completamente do paradigma entretanto praticado, isto é, da
pedagógica predominância da escrita sobre a oralidade para efeitos de
avaliação, da cronologia e da historiografia, do questionamento das temáticas
antropológicas e epistemológico-hermenêuticas. Mas incluindo sobretudo os
métodos colaborativos de aprendizagem, integrando com intensidade a produção
cultural em língua portuguesa, e com ecletismo, na iniciação à filosofia e às
ciências. Quem leu as palavras claríssimas de um Delfim Santos acerca da
filosofia prefere-a naturalmente a outras versões, igualmente interessantes,
mas, em traduções. A introdução ao estudo da história, e ao facto científico,
proporcionada na introdução de Fernão Lopes na Crónica de D.João I, é ímpar. A
poesia, como cenário de um contexto histórico e expressão acerca da condição
humana, pode ser pedagogicamente mais estimulante e grave do que algumas
dissertações que mais parecem saídas de uma máquina de propaganda ocidental do
que de um laboratório pedagógico, interdisciplinar e eclético.
Ao terminar esse debate, à saída, tenho o gratíssimo prazer
de António Quadros se me dirigir, com total surpresa minha, e convidar-me para
os colóquios no IADE. É verdade que já para eles havia entrado na semana
anterior pela mão do Elísio Gala, mas foi esse um episódio que nunca
esquecerei, pois por ele dou a conhecer alguém que do púlpito dos
conferencistas vem convidar uma pessoa que participara, para lhe proporcionar o
estímulo, a continuidade e o aprofundamento dessa participação. Porém, estou
reconhecido a António Quadros por outros e vários motivos, não apenas pelo seu
acolhimento, mas também pela sua promoção da cultura portuguesa e lusófona,
pelo seu trato e pela sua presença.