quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Poética dos Mares IV

in JEM


Enquanto os poetas dizem o mar que nos fala, na interlocução do homem com o mar este torna-se um espelho que amplifica quer a nossa sensibilidade, quer as nossas tragédias mais fundas. Considerando a mole imensa do mar o homem é disposto descentradamente, seja por via da sua contemplação elemental e paisagística que nos dispersa e extasia, seja na produção estética dos nossos sofrimentos e tragédias. Pois o mar tem um pulsar e uma enormidade transcendente à dimensão humana. Acolhe ecos pessoais: salgado, amargo, queixoso, irado, bailarina. Mas não só, outros aspetos também como sepulcral, abismal, sombra perene, intemporal. É também lugar de maravilhoso, brilho, númen, que referem planos de existência tocando e transbordando a condição humana.
A voz e o modo do mar tendem a apresentar-se poeticamente em dualidade, nos extremos do sentimento, no êxtase estético ou na dor sentimental ou moral (mas passando pela náusea da necessidade e pelo constante sofrimento – imagem de nossas ânsias). É sobretudo sob o aspeto do sofrimento constante que aqui interpretamos a voz do mar, concentrando-nos, por ora, em Teixeira de Pascoaes.
A voz do mar representa, no seu bramir e marulhar, o continuado sofrimento humano e o seu derivado lamento:

Homem, eu bem conheço o eterno sofrimento!
Em nuvens, sobe ao céu meu constante lamento...
Teixeira de Pascoaes (Assírio & Alvim, 1998-1904)

Ou representando a dor e amargura que acompanha esse sofrimento nos dramas humanos:

Quem conhece, como eu, a tua grande dor?
Lágrimas de tristeza e lágrimas d'amor.
Nas minhas ondas sinto o vosso sal amargo!
Teixeira de Pascoaes (Assírio & Alvim, 1998-1904)

Todavia, além das desgraças humanas, das paixões salgadas e amargas, das tristezas que pontuam o trilho da vida humana, também existem, mais fundas, a tragédia e o mistério da vida e da morte - o humano naufrágio:

(...) há sepulcros também neste meu peito largo,
Insondável... Eu tenho a ciência do Mistério
Que há só no livro sepulcral dum cemitério ! (...)
Teixeira de Pascoaes (Assírio & Alvim, 1998-1904)

Para Pascoaes, essa tenção na voz do mar é reapresentada pela figura de Prometeu, que, como o homem, é agrilhoado constantemente ao sofrimento e à tragédia,

Ninguém como eu conhece o sofrimento humano.
Eu, o mártir sem nome, o ensanguentado Oceano,
Um outro Prometeu...
Teixeira de Pascoaes (Assírio & Alvim, 1998-1904)


Contudo, condenado e revoltado contra seus limites, como na tragédia de Ésquilo – Prometeu –, o mar lembra o homem que agrilhoado concebe perspetivas ulteriores à sua condição, procurando ultrapassá-la, e assim vive a expetativa quase desesperada da libertação, uma expetativa quiçá saudosa do futuro. Pelas palavras de António Botto essa voz acompanha os mais doces, verdadeiros e misteriosos enleios humanos:

(…) Voz do mar, mysteriosa;
Voz do amôr e da verdade!
- Ó voz moribunda e dôce
Da minha grande Saudade!
(...)
António Botto (Presença, 1999-1941)

Mas partilhando essa privação em vida, essa escassez de plenitude, da qual sempre nos procuramos desprender por ilusão ou por promessa, as sonoridades e movimentos do mar permitem semelhanças humanas, com o choro e riso, a alegria e a tristeza, as limitações do homem, guardando contudo a sua tragédia mortal:

Eu hontem passei o dia
Ouvindo o que o mar dizia.
Chorámos, rimos, cantámos.
Fallou-me do seu destino,
Do seu fado...
Depois, para se alegrar,
Ergueu-se, e bailando, e rindo,
Poz-se a cantar
Um canto molhádo e lindo.
O seu halito perfuma,
E o seu perfume faz mal!
Deserto de aguas sem fim.
Ó sepultura da minha raça
Quando me guardas a mim?...
(…)

António Botto (Presença, 1999-1941)


Representa o mar poeticamente a mágoa, a rebeldia, a fúria e a ânsia, o desejo ardente e seu desespero, contido pelas duras fragas, e nisto constituindo para o homem imagem de seus modos limitados, de seu fado, desventura e término:

Já que o sol pouco a pouco se desmaia
E meu mal cada vez mais se desvela,
Enquanto a pena, a ânsia, a mágoa vela,
Quero aqui estar sozinho nesta praia.
Que bravo o mar se vê! Como se ensaia
Na fúria e contra os ares se rebela!
Como se enrola! Como se encapela!
Parece quer sair da sua raia.

Mas também que inflexível, que constante
Aquela penha está à força dura
De tanto assalto e horror perseverante!

Ó empolado mar, penha segura,
Sois a imagem mais própria e semelhante
De meu fado e da minha desventura.

Francisco de Pina de Melo (Of. Joseph Antunes da Sylva, 1727)

Na poesia de Alexandre Herculano revela-se sobretudo a acentuada dualidade do mar, entre o sonho simples e puro ou o terror que suscitam as águas marítimas. Uma dualidade que nos surpreende assustando-nos, pois ainda agora era o mar manso e resplandecente, e logo depois é furioso e intemperado. Junto ao mar folga o poeta e medita numa paz de sonhos bendizendo seu estado:

É tão suave ess'hora,
Em que nos foge o dia,
E em que suscita a Lua
Das ondas a ardentia,

Se em alcantis marinhos,
Nas rochas assentado,
O trovador medita
Em sonhos enleado!

O mar azul se encrespa
Coa vespertina brisa,
E no casal da serra
A luz já se divisa.

E tudo em roda cala
Na praia sinuosa,
Salvo o som do remanso
Quebrando em furna algosa.

Ali folga o poeta
Nos desvarios seus,
E nessa paz que o cerca
Bendiz a mão de Deus.
(...)

Alexandre Herculano (Europa-América, 1986-1838)

Mas, de seguida, já a nuvem que nos céus negra flutua cresce, e o vento varre a fraga nua com hórrido clamor, e os vagalhões nas arribas expiram furor. Ao poeta cobre-lhe o véu de tristeza, calou-se em seu hino à natureza e por seu sentimento voga em negruras o pensamento,


(...) despregou seu grito
A alcíone gemente,
E nuvem pequenina
Ergueu-se no ocidente:

E sobe, e cresce, e imensa
Nos céus negra flutua,
E o vento das procelas
Já varre a fraga nua.
Turba-se o vasto oceano,
Com hórrido clamor;
Dos vagalhões nas ribas
Expira o vão furor,

E do poeta a fronte
Cobriu véu de tristeza;
Calou, à luz do raio,
Seu hino à natureza.

Pela alma lhe vagava
Um negro pensamento,
Da alcíone ao gemido,
Ao sibilar do vento.

Alexandre Herculano (Europa-América, 1986-1838)

Mas não há motivo para queixume pelas procelas, nem pelo roubo de miríades de estrelas que as nuvens densas apagam, nem pelo estourar dos bramidos poderosos. Diz o mar:

«Cantor, esse queixume
Da núncia das procelas,
E as nuvens, que te roubam
Miríades de estrelas,

E o frémito dos euros
[ventos de leste],
E o estourar da vaga,
Na praia, que revolve,
Na rocha, onde se esmaga,

Onde espalhava a brisa
Sussurro harmonioso,
Enquanto do éter puro
Descia o Sol radioso.

Tipo da vida do homêm,
É do universo a vida:
Depois do afã repouso,
Depois da paz a lida.

Alexandre Herculano (Europa-América, 1986-1838)


Procurando a analogia com o humano, para depois permitir-se, pela semelhança insinuada, correlacionar o seu ser desmedido ao homem, adianta ainda mais a voz do mar:

Se ergueste a Deus um hino
Em dias de amargura;
Se te amostraste grato
Nos dias de ventura,

Seu nome não maldigas
Quando se turba o mar
(…)
a causa
Disso o universo ignora,
E mudo está. O nume,
Como o universo, adora!»
(...)
Alexandre Herculano (Europa-América, 1986-1838)

Mas não é da intenção humana vogar entre os elementos, nem conceder o ser perante o horror ou adorar a natureza em seus portentos ou idílica mansidão. Por isto blasfema a voz que intenta que o homem se incline a essas formas. Responde o poeta ao mar, sustentando a dignidade humana:

(…) torva blasfémia
Não manchará seu canto!
Brama a procela embora;
Pese sobre ele o espanto;

Que de sua harpa os hinos
Derramará contente
Aos pés de Deus, qual óleo
Do nardo recendente.

Alexandre Herculano (Europa-América, 1986-1838)

Não está, pois, nesses excessos propostos pelo mar, o modo em que se proporciona a medida humana. Além e apesar de tão ríspidas dualidades e por tão diversos pareceres, sob o peso do espanto procura o homem encontrar sua medida e sua pertença, todavia, sem a grandiosa representação marítima, mas por nossa vontade, sensibilidade e inteligência, potências capazes de nos realizar autónomos dos elementos resplandecentes ou em fúria, e autónomos das enormidades materiais ou morais.
Miguel Torga também nos propicia uma exposição desta dramática dualidade do mar, entre a dimensão do fechado e do aberto, mas que nos distingue de sua natureza anfibológica, a ambiguidade desesperada de um mar encerrado nos seus limites. Por um lado, referindo os naúfragos, todos, estão estes de sombra tecidos e em sombra soterrados no coração ciumento de um mar fechado que os encerra, representando o bojo da morte, por outro lado mostra um mar que pode ser aberto e descoberto «Com bússulas e gritos de gajeiro!», como a vida, se subtraída às dualidades dos acessos de fúria e desespero e aos momentâneos idílios, mas conhecendo o operativo mar, esse modo «(…) salgado, lírico, coberto/ De lágrima, iodo e nevoeiro!». Ouçamos o poeta:

Soterrados em verde, negro e vago,
Nenhum sol os aquece.
Habitantes do lago
Do esquecimento, só a sombra os tece...

Ela que és tu, anónimo oceano,
Coração ciumento e namorado!
Ela que és tu, arfar viril e plano,
Largo como um braço descuidado!

Tu, mar fechado, aberto e descoberto
Com bússulas e gritos de gajeiro!
Tu, mar salgado, lírico, coberto
De lágrima, iodo e nevoeiro!
Miguel Torga (Tip. Gráf. de Coimbra, 1978-1946)