sábado, 19 de novembro de 2016
Poética dos Mares V
in JEM |
Mar,
êxtase e sagração
«Primeiro
dia», «clareza», «primeiro amor», «inteireza», «praia
extasiada e nua», são algumas das expressões que nos abrem para
uma textualidade indicadora de um sujeito poético que ouviu, viu e
foi transportado numa
praia atlântica e
sagrada,
num aqui e agora maravilhoso, num tempo e liberdade apaixonantes, de
lúcidez exuberante:
Aqui
nesta praia onde
Não
há nenhum vestígio de impureza,
Aqui
onde há somente
Ondas
tombando ininterruptamente,
Puro
espaço e lúcida unidade,
Aqui
o tempo apaixonadamente
Encontra
a própria liberdade.
Sophia
de Mello Breyner Andresen (Assírio & Alvim, 2013-1958)
A noção de perfeição acontece através contemplação marítima, emergindo uma transformação da qualidade temporal, dispondo um sujeito que transcende a temporalidade vulgar, cujo início são as musicalidades do mar:
(...)
Musa
ensina-me o canto
Onde o
mar respira
Coberto
de brilhos (...)
Sophia
de Mello Breyner Andresen (Morais,
1962)
A
alteração qualitativa, no modo de sentir e ver, acontece pelo subir
da musicalidade do mar na consciência que se extasia, manifestando
um acontecimento que vai descobrindo-se em espaço separado da
agitação trepidante, discordante e dissonante. É o êxtase
poético... que abre o sagrado e novo espaço, então oculto, porém
pela poesia recriado, renovador e identitário.
Um
terceiro momento desta iniciação ao mistério que o mar proporciona
acontece numa recorrente e perene intuição em vários poetas: a
subida
do mar ao céu, criando a fusão do mar com o céu, onde este se
espelha e se poderia identificar, na confusão entre o mar em baixo e
o céu de em cima. Na metafórica subida do mar ao céu, é evocada a
transmutação do estado subjetivo, do consabido para o lírico, onde
a visão passa a conhecer cada momento como novo. É exemplar para
uma demonstração este excerto:
…....
O mar sobe ao céu
(...)
Hoje
é o dia
o
momento
a
hora inadiável.
Cada
dia
é
o derradeiro sopro
da
flauta da Criação.(...)
José
Fanha (Campo
das Letras, 2002)
Eis
o mundo de novo desocultado, revelado junto ao mar e separado
do buliçoso mundo. Instaura-se uma densidade temporal alternativa,
que atestada por experiência e memória únicas, revela o inefável
a partir do marítimo:
(...)
Ah, quem pudesse ouvi-lo sem mais versos!
Assim
puro,
Assim
azul,
Assim
salgado...
Milagre
horizontal
Universal,
Numa
palavra só realizado.
Miguel
Torga (D. Quixote, 2011-1968)
E
nesta transmutação até ao inefável, o verbo poético propicia
perante a exaltação
e imensidão
do mar, a perspetiva de um vaso humano pequeno e recipiente, apenas
como uma
(...) Estreita taça
A
transbordar da anunciação
Que
às vezes nas coisas passa.
Sophia
de Mello Breyner Andresen (Assírio & Alvim, 2013-1938)
O
imenso e o inefável é já caminho do poeta, desde
a orla da praia,
por um
jardim
à beira-mar, num trajeto que vai além de um antes já conhecido e
que, depois, súbita e abruptamente se encontra
num
plano de referenciação novo. Nesta passagem por passos distintos e
sequenciais alça-se
o poeta à experiência de um ser purificado, como num
puro amor primeiro,
num claro viver e saber, numa tão clara impressão que nenhuma outra
semelhante lhe veio à vida. A força, a originalidade e ineditismo,
a surpresa
e o arroubo de tal experiência marítima e poética se
constituirá em lembrança permanente, e nunca mais poderá ser
obliterada da história pessoal:
(…)
Ó
claras Ninfas! Se o sentido
em puro
amor tivestes, e inda agora
da
memória o não tendes esquecido;
(…)
lembranças,
que me acompanhavam
pola
tranquilidade da bonança,
nem na
tormenta grave me deixavam.
Luís
de Camões, in
Lírica (1595)
Os
carateres do mar, as suas distinções entre as realidades, sua
índole, seus sinais e símbolos, os aspetos de seu existir, sua
beleza diversa e medonhas faces, torna-o em espaço privilegiado de
entrada a um diferenciado acontecer subjetivo. Desde
a orla
do mar,
onde se convolou a perceção do ordinário dia ao espetáculo do
novo, o caminho verte-se então para o centro na subjetividade
criadora, à semelhança da arte antiga e erudita, como outrora
Delphos o fora para a Hélade:
Desde
a orla do mar
Onde tudo começou intacto no primeiro dia de mim
Desde a orla do mar
Onde vi na areia as pegadas triangulares das gaivotas
Enquanto o céu cego de luz bebia o ângulo do seu voo
Onde amei com êxtase a cor o peso e a forma necessária das conchas
Onde vi desabar ininterruptamente a arquitectura das ondas
E nadei de olhos abertos na transparência das águas
Para reconhecer a anémona a rocha o búzio a medusa
Para fundar no sal e na pedra o eixo recto
Da construção possível
Desde a sombra do bosque
Onde se ergueu o espanto e o não-nome da primeira noite
E onde aceitei em meu ser o eco e a dança da consciência múltipla
Desde a sombra do bosque desde a orla do mar
Caminhei para Delphos
Porque acreditei que o mundo era sagrado
E tinha um centro
Que duas águias definem no bronze de um voo imóvel e pesado (...)
Sophia de Mello Breyner Andresen (Caminho, 2011-1972)
Onde tudo começou intacto no primeiro dia de mim
Desde a orla do mar
Onde vi na areia as pegadas triangulares das gaivotas
Enquanto o céu cego de luz bebia o ângulo do seu voo
Onde amei com êxtase a cor o peso e a forma necessária das conchas
Onde vi desabar ininterruptamente a arquitectura das ondas
E nadei de olhos abertos na transparência das águas
Para reconhecer a anémona a rocha o búzio a medusa
Para fundar no sal e na pedra o eixo recto
Da construção possível
Desde a sombra do bosque
Onde se ergueu o espanto e o não-nome da primeira noite
E onde aceitei em meu ser o eco e a dança da consciência múltipla
Desde a sombra do bosque desde a orla do mar
Caminhei para Delphos
Porque acreditei que o mundo era sagrado
E tinha um centro
Que duas águias definem no bronze de um voo imóvel e pesado (...)
Sophia de Mello Breyner Andresen (Caminho, 2011-1972)
Esse
centro permanecerá em símbolos como vértice interior à vivência
poética e humana. Um grito, como o relâmpago puro que fere, rompe e
estremece a existência, revela a humanidade em sua nudez, onde
apenas é querendo, perseguindo e indagando a selvagem
exaltação das ondas:
De
todos os cantos do mundo
Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua,
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.
Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua,
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.
Cheiro
a terra as árvores e o vento
Que a Primavera enche de perfumes
Mas neles só quero e só procuro
A selvagem exalação das ondas
Subindo para os astros como um grito puro.
Que a Primavera enche de perfumes
Mas neles só quero e só procuro
A selvagem exalação das ondas
Subindo para os astros como um grito puro.
Sophia
de Mello Breyner Andresen (Companhia das Letras, 2004-1944)
A
partir desse grito, emitido noturnamente na
praia extasiada e nua,
depois de nos embrenharmos pela audição do antigo cântico do mar,
se fez ouvir então um cântico, quiçá com lágrimas, o
(...)
cântico da longa vasta praia
Atlântica
e sagrada
Onde
para sempre minha alma foi criada
Sophia
de Mello Breyner Andresen (Caminho,
2004-1997)
Esta
música marítima pode abrir a consciência fora dos limites da ordem
do dia. A vida humana perpassa, ainda que breve, por acontecimentos
inolvidáveis, e se o horizonte puro, sagrado, é aberto ao sujeito
poético junto ao mar e propicia o êxtase:
Onda
de sol, verso de ouro,perífrase
vã. Extasiar-me,
antes, por esta fusão,
mistura de brilhos. Ou, ainda
mais íntima, a consciência
extensa como o céu, o corpo de tudo,
semelhança absoluta. Respirar
na quebra da onda. Na água,
uma braçada lenta
até ao limite de mim.
Fiama Hasse Pais Brandão (Assírio & Alvim, 1989)
antes, por esta fusão,
mistura de brilhos. Ou, ainda
mais íntima, a consciência
extensa como o céu, o corpo de tudo,
semelhança absoluta. Respirar
na quebra da onda. Na água,
uma braçada lenta
até ao limite de mim.
Fiama Hasse Pais Brandão (Assírio & Alvim, 1989)
A
partir deste espaço poético, desde
a
orla
do mar e
de suas musicalidades, onde o êxtase é possível na consciência
tocada pelo inefável, começa uma consciência
extensa como o céu,
onde tudo começou intacto
como num primeiro
dia, e
onde
outro
nasceu de tudo quanto viu (Sophia
de Mello Breyner Andresen, Caminho, 2010-1972),
aí
Tudo
era claro:
céu,
lábios, areias,
O
mar estava perto,
fremente
de espumas,
Corpos
ou ondas:
iam,
vinham, iam,
dóceis,
leves – só
ritmo
e brancura.
Felizes,
cantam;
serenos,
dormem;
despertos,
amam,
exaltam
o silêncio.
Tudo
era claro,
jovem,
alado.
O
mar estava perto.
Puríssimo.
Doirado.
Eugénio
de Andrade (Assírio
& Alvim, 2013-1961)
Contudo,
não podemos aceder a esta experiência sem passar no jardim
marítimo. Junto ao mar há um jardim,
milagrosamente debruçado sobre a imensidão de mar que o limita, um
jardim
suspenso
sobre o mar, e contra este jardim à beira-mar vem toda a cavalgada
marítima:
Vi
um jardim que se desenrolava
Ao longo de uma encosta suspenso
Milagrosamente sobre o mar
Que do largo contra ele cavalgava
Desconhecido e imenso.(...)
Ao longo de uma encosta suspenso
Milagrosamente sobre o mar
Que do largo contra ele cavalgava
Desconhecido e imenso.(...)
Sophia
de Mello Breyner Andresen (Assírio & Alvim, 2013-1938)
É
um jardim inóspito, metáfora da vivência humana perante o mar,
lugar apenas onde perduramos, perante a convivência com a enormidade
da grandeza e das suas potências dramáticas, líricas e trágicas.
As flores desse jardim são selvagens
e duras,
têm cactos
torcidos,
tem areia
branca e rochas escuras, pinheiros magros, ali
passa
o vento áspero
e
salgado.
A
devastação
é
operante e sinaliza a indomável violência do mar.
É
um jardim passagem obrigatória à proximidade do mar. É um lugar
semidesértico, inabitável, próximo da morte, tanto pelos
duros elementos como por um obscuro tormento,
pela exaustão onde termina o aconchego humano, e paradoxal, onde
morre a fala pelos
mil esplendores
de que
o mar se reveste em cada hora (Sophia
de Mello Breyner Andresen, Assírio & Alvim, 2013-1938).
A partir deste quadro existencial, com o mar imenso e musical em
frente, se pode reconhecer melhor a profundidade e a pujança das
forças anímicas que o mar liberta e proporciona simbolicamente à
nossa disposição humana. A este respeito atente-se neste excerto da
prosa de Herculano: «(…)
[O]
vento e o oceano são as duas únicas expressões sublimes do verbo
de Deus, escritas na face da Terra quando ainda ela se chamava caos.
(…).
Que tinham eles [os
homens],
de feito, com essas [suas]
existências, mais passageiras e incertas que as correntezas de um e
que as ondas buliçosas do outro?»
(Alexandre Herculano, Euríco,
o Presbítero,
Edi9, 2010). A existência de uma desmesurada imensidão em
correnteza buliçosa, violenta e sem sentido, é a representação do
mar e de uma divindade mais antiga que a criação do homem, numa
existência em pureza e inutilidade. A existência do mar está mais
perto do divino primordial e sem rosto. O mar, como natureza que
antecede o homem, voga sem alguma teleologia que o enforme, e só
pode ser vivenciado como uma primordial dinâmica, original ímpeto
do caráter poético:
Eu
não sou quem fiquei; o meu delito
Lá
anda atrás de forma mal formada
Pelo
convés do vento, p´la amurada
Do
mar interno e franco onde me agito.
Passaporte
caduco...As fronteiras que invado
São
migalhas de sombra e restos de sentido.
Tudo
é fragmento em verbo diluído
Através
do convés lentamente embalado.
Eu
não sou quem, atado, coincide
Com
foto de cartão de identidade.
Sou
memória dum mundo que me invade,
Sou
espaço que o ar prensa e divide.
José
Martins Garcia (Salamandra, 1996)
Roteiros Reais
Será no próximo dia 26 de Novembro pelas 10:00 que a Real Associação de Lisboa realiza uma visita guiada ao Palácio Nacional da Ajuda no âmbito da rubrica Roteiros Reais.
De novo sob os holofotes da opinião pública pela polémica conclusão da ala norte, este Palácio foi residência oficial da Família Real Portuguesa entre 1861 e 1910. A Ajuda surge no local onde, depois do fatídico dia 1 de Novembro de 1755, D. José instalou a sua residência, que ficou conhecida como a "Real Barraca". Palco de vários acontecimentos políticos, sociais e familiares, ficou para sempre consagrada como o Palácio dos Reis de Portugal, em Lisboa. Venha conhecer a interessante história da Ajuda, dos seus arquitectos, decoradores, e de quem o habitou, a Família Real Portuguesa.
Esta visita, que será guiada pelo nosso associado Joel Moedas Miguel e por Pedro Fortes da Silva, tem lugares limitados e um custo de € 10,00 por pessoa. O ponto de encontro será no Terreiro fronteiro ao Palácio.
Para mais esclarecimentos e inscrições contacte-nos através do endereçosecretariado@reallisboa.pt, pelo telefone 21 342 81 15 ou presencialmente na nossa Sede nos horários habituais.
quinta-feira, 17 de novembro de 2016
sexta-feira, 11 de novembro de 2016
quinta-feira, 10 de novembro de 2016
Quarenta anos passados
Quarenta anos passados sobre o falecimento do Senhor Dom Duarte Nuno, importa lembrar o pensamento e a acção deste nosso Príncipe.
É o que faremos no dia 3 de Dezembro, às 15:30, no Grémio Literário (Rua Ivens, 37, Metro: Baixa-Chiado), ouvindo os Profs. Doutores Pedro Soares Martinez e Fernando Amaro Monteiro. Entrada livre, sujeita à disponibilidade do local.
Após a sessão terá lugar um chá, opcional, presidido por SS.AA.RR. os Senhores Duques de Bragança e com o custo individual de 10,00 eur.
Para mais esclarecimentos e inscrições contacte-nos através do endereçosecretariado@reallisboa.pt, pelo telefone 21 342 81 15 ou presencialmente na nossa Sede nos horários habituais.
domingo, 30 de outubro de 2016
Conjurados pela Causa Real
Irá realizar-se no próximo dia 30 de Novembro, no Hotel Lisbon Marriott (Avenida dos Combatentes, 45), o tradicional Jantar dos Conjurados promovido pela Causa Real. Este evento assinala a importância e o significado da Restauração da Independência de Portugal, acontecimento histórico que os monárquicos portugueses gostam de celebrar com a sua Família Real.
Sua Alteza Real o Senhor Dom Duarte lerá uma Mensagem aos Portugueses às 19:30, seguindo-se o jantar com a Família Real.
Será realizado um leilão de obras de artistas portugueses conceituados, sendo que parte do lucro do jantar reverterá a favor das Missionárias da Caridade (Madre Teresa de Calcutá).
As inscrições serão feitas, como de costume, presencialmente na sede da Real Associação de Lisboa (15:00-18:00) ou através da internet: secretariado@reallisboa.pt.
sexta-feira, 14 de outubro de 2016
Da Importância da História e da Narração Identitária
CPLP |
As sociedades não morrem, não só porque têm historiadores ou analistas ou narradores oficiais, mas também porque têm línguas e porque são narradas por elas. O conteúdo simbólico das línguas corresponde ao seu poder identitário, refletem o que proporcionam como nações variadas.
Apud Claude Hagège
quinta-feira, 13 de outubro de 2016
Ideias para a UE
Jyrki Katainen |
In
a fast-changing world, Europe needs new ideas and new initiatives
to achieve long-term sustainable growth that will make the continent
more resilient, more competitive, and more innovative. At the
European Commission, we have been working hard to complete the
Single Market, build out a Capital Markets Union, and strengthen
growth with our flagship plans for investment. We are not
operating in a vacuum, however, and are always eager to hear new
proposals and suggestions, especially from a broad public.
In
that context, we have been pleased to support the McKinsey Global
Institute’s initiative to crowdsource ideas for growth-oriented
reforms through its “Opportunity for Europe” essay contest.
It is very encouraging for us to see that, at a time of some
public scepticism about European institutions, there is still a
tremendous amount of enthusiasm for the European project, and high
expectations for policy reforms.
The
number of submissions to the essay contest, the range of the ideas
that were aired, and the breadth of participation from people around
the globe, all are causes for hope and optimism. This shows that,
even in complicated times, there are many creative people— and not
only in Europe—with strong ideas about the future of our continent,
and its unique form of political and economic integration. It is
very timely and important that we debate a comprehensive strategy for
the European Union, together and constructively. (…)
Jyrki
Katainen, Vice Presidente da Comissão Europeia, in Mckinsey Global Institute
Poética dos Mares IV
in JEM |
Enquanto
os poetas dizem o mar que nos fala, na interlocução do homem com o
mar este torna-se um espelho que amplifica
quer a nossa sensibilidade,
quer as
nossas tragédias mais fundas. Considerando a mole imensa do mar o
homem é disposto descentradamente,
seja
por
via da sua contemplação elemental e paisagística
que nos dispersa e extasia,
seja
na produção estética dos nossos sofrimentos e tragédias. Pois o
mar tem um pulsar e uma enormidade transcendente à dimensão humana.
Acolhe ecos pessoais: salgado, amargo, queixoso, irado, bailarina.
Mas não só, outros aspetos também como sepulcral, abismal, sombra
perene, intemporal. É também lugar de maravilhoso, brilho, númen,
que referem planos de existência tocando e transbordando a condição
humana.
A
voz e o modo do mar tendem a apresentar-se poeticamente em dualidade,
nos extremos do sentimento, no êxtase estético ou na dor
sentimental ou moral (mas passando pela náusea da necessidade e pelo
constante sofrimento – imagem de nossas ânsias). É sobretudo sob
o aspeto do sofrimento constante que aqui interpretamos a voz do mar,
concentrando-nos, por ora, em Teixeira de Pascoaes.
A
voz do mar representa, no seu bramir e marulhar, o continuado
sofrimento humano e o seu derivado lamento:
Homem,
eu bem conheço o eterno sofrimento!
Em
nuvens, sobe ao céu meu constante lamento...
Teixeira
de Pascoaes (Assírio
& Alvim, 1998-1904)
Ou
representando a dor e amargura que acompanha esse sofrimento nos
dramas humanos:
Quem conhece, como eu, a tua
grande dor?
Lágrimas de tristeza e
lágrimas d'amor.
Nas minhas ondas sinto o
vosso sal amargo!
Teixeira
de Pascoaes (Assírio
& Alvim, 1998-1904)
Todavia,
além das desgraças humanas, das paixões salgadas e amargas, das
tristezas que pontuam o trilho da vida humana, também existem, mais
fundas, a tragédia e o mistério da vida e da morte - o humano
naufrágio:
(...)
há sepulcros também neste meu peito largo,
Insondável...
Eu tenho a ciência do Mistério
Que
há só no livro sepulcral dum cemitério ! (...)
Teixeira
de Pascoaes (Assírio
& Alvim, 1998-1904)
Para Pascoaes, essa tenção na
voz do mar é reapresentada pela figura de Prometeu, que, como o
homem, é agrilhoado constantemente ao sofrimento e à tragédia,
Ninguém
como eu conhece o sofrimento humano.
Eu,
o mártir sem nome, o ensanguentado Oceano,
Um
outro Prometeu...
Teixeira
de Pascoaes (Assírio
& Alvim, 1998-1904)
Contudo,
condenado e revoltado contra seus limites, como na tragédia de
Ésquilo – Prometeu
–, o mar lembra o homem que agrilhoado concebe perspetivas
ulteriores à sua condição, procurando ultrapassá-la, e assim vive
a expetativa quase desesperada da libertação, uma expetativa quiçá
saudosa do futuro. Pelas palavras de António Botto essa voz
acompanha os mais doces, verdadeiros e misteriosos enleios humanos:
(…) Voz do mar, mysteriosa;
Voz do amôr e da verdade!
- Ó voz moribunda e dôce
Da minha grande Saudade! (...)
António
Botto (Presença,
1999-1941)
Mas
partilhando essa privação em vida, essa escassez de plenitude, da
qual sempre nos procuramos desprender por ilusão ou por promessa, as
sonoridades e movimentos do mar permitem semelhanças humanas, com o
choro e riso, a alegria e a tristeza, as limitações do homem,
guardando contudo a sua tragédia mortal:
Eu
hontem passei o dia
Ouvindo o que o mar dizia.
Chorámos, rimos, cantámos.
Fallou-me do seu destino,
Do seu fado...
Depois, para se alegrar,
Ergueu-se, e bailando, e rindo,
Poz-se a cantar
Um canto molhádo e lindo.
O seu halito perfuma,
E o seu perfume faz mal!
Deserto de aguas sem fim.Ó sepultura da minha raça
Quando me guardas a mim?... (…)
Ouvindo o que o mar dizia.
Chorámos, rimos, cantámos.
Fallou-me do seu destino,
Do seu fado...
Depois, para se alegrar,
Ergueu-se, e bailando, e rindo,
Poz-se a cantar
Um canto molhádo e lindo.
O seu halito perfuma,
E o seu perfume faz mal!
Deserto de aguas sem fim.Ó sepultura da minha raça
Quando me guardas a mim?... (…)
António
Botto (Presença,
1999-1941)
Representa
o mar poeticamente a mágoa, a rebeldia, a fúria e
a ânsia, o desejo ardente e seu desespero, contido pelas duras
fragas, e nisto constituindo para o homem imagem de seus modos
limitados, de seu fado, desventura e término:
Já
que o sol pouco a pouco se desmaia
E meu mal cada vez mais se desvela,
Enquanto a pena, a ânsia, a mágoa vela,
Quero aqui estar sozinho nesta praia.Que bravo o mar se vê! Como se ensaia
Na fúria e contra os ares se rebela!
Como se enrola! Como se encapela!
Parece quer sair da sua raia.
Mas também que inflexível, que constante
Aquela penha está à força dura
De tanto assalto e horror perseverante!
Ó empolado mar, penha segura,
Sois a imagem mais própria e semelhante
De meu fado e da minha desventura.
Francisco de Pina de Melo (Of. Joseph Antunes da Sylva, 1727)
E meu mal cada vez mais se desvela,
Enquanto a pena, a ânsia, a mágoa vela,
Quero aqui estar sozinho nesta praia.Que bravo o mar se vê! Como se ensaia
Na fúria e contra os ares se rebela!
Como se enrola! Como se encapela!
Parece quer sair da sua raia.
Mas também que inflexível, que constante
Aquela penha está à força dura
De tanto assalto e horror perseverante!
Ó empolado mar, penha segura,
Sois a imagem mais própria e semelhante
De meu fado e da minha desventura.
Francisco de Pina de Melo (Of. Joseph Antunes da Sylva, 1727)
Na
poesia de Alexandre Herculano revela-se sobretudo a acentuada
dualidade do mar, entre o sonho simples e puro ou o terror que
suscitam as águas marítimas. Uma dualidade que nos surpreende
assustando-nos, pois ainda agora era o mar manso e resplandecente, e
logo depois é furioso e intemperado. Junto ao mar folga
o poeta
e medita
numa
paz de sonhos
bendizendo seu estado:
É tão
suave ess'hora,
Em que nos foge o dia,
E em que suscita a Lua
Das ondas a ardentia,
Se em alcantis marinhos,
Nas rochas assentado,
O trovador medita
Em sonhos enleado!
O mar azul se encrespa
Coa vespertina brisa,
E no casal da serra
A luz já se divisa.
E tudo em roda cala
Na praia sinuosa,
Salvo o som do remanso
Quebrando em furna algosa.
Ali folga o poeta
Nos desvarios seus,
E nessa paz que o cerca
Bendiz a mão de Deus. (...)
Em que nos foge o dia,
E em que suscita a Lua
Das ondas a ardentia,
Se em alcantis marinhos,
Nas rochas assentado,
O trovador medita
Em sonhos enleado!
O mar azul se encrespa
Coa vespertina brisa,
E no casal da serra
A luz já se divisa.
E tudo em roda cala
Na praia sinuosa,
Salvo o som do remanso
Quebrando em furna algosa.
Ali folga o poeta
Nos desvarios seus,
E nessa paz que o cerca
Bendiz a mão de Deus. (...)
Alexandre
Herculano (Europa-América, 1986-1838)
Mas,
de seguida, já a nuvem que nos
céus
negra flutua cresce,
e o vento varre
a fraga nua
com
hórrido clamor,
e os vagalhões nas arribas expiram furor. Ao
poeta
cobre-lhe
o
véu de tristeza,
calou-se
em seu hino à natureza e por seu sentimento voga em negruras o
pensamento,
(...)
despregou
seu grito
A alcíone gemente,
E nuvem pequenina
Ergueu-se no ocidente:
E sobe, e cresce, e imensa
Nos céus negra flutua,
E o vento das procelas
Já varre a fraga nua.
A alcíone gemente,
E nuvem pequenina
Ergueu-se no ocidente:
E sobe, e cresce, e imensa
Nos céus negra flutua,
E o vento das procelas
Já varre a fraga nua.
Turba-se
o vasto oceano,
Com hórrido clamor;
Dos vagalhões nas ribas
Expira o vão furor,
E do poeta a fronte
Cobriu véu de tristeza;
Calou, à luz do raio,
Seu hino à natureza.
Pela alma lhe vagava
Um negro pensamento,
Da alcíone ao gemido,
Ao sibilar do vento.
Alexandre Herculano (Europa-América, 1986-1838)
Com hórrido clamor;
Dos vagalhões nas ribas
Expira o vão furor,
E do poeta a fronte
Cobriu véu de tristeza;
Calou, à luz do raio,
Seu hino à natureza.
Pela alma lhe vagava
Um negro pensamento,
Da alcíone ao gemido,
Ao sibilar do vento.
Alexandre Herculano (Europa-América, 1986-1838)
Mas não
há motivo para queixume pelas procelas, nem pelo roubo de miríades
de estrelas que as nuvens densas apagam, nem pelo estourar dos
bramidos poderosos. Diz o mar:
«Cantor,
esse queixume
Da núncia das procelas,
E as nuvens, que te roubam
Miríades de estrelas,
E o frémito dos euros [ventos de leste],
E o estourar da vaga,
Na praia, que revolve,
Na rocha, onde se esmaga,
Onde espalhava a brisa
Sussurro harmonioso,
Enquanto do éter puro
Descia o Sol radioso.
Da núncia das procelas,
E as nuvens, que te roubam
Miríades de estrelas,
E o frémito dos euros [ventos de leste],
E o estourar da vaga,
Na praia, que revolve,
Na rocha, onde se esmaga,
Onde espalhava a brisa
Sussurro harmonioso,
Enquanto do éter puro
Descia o Sol radioso.
Tipo da
vida do homêm,
É do universo a vida:
Depois do afã repouso,
Depois da paz a lida.
É do universo a vida:
Depois do afã repouso,
Depois da paz a lida.
Alexandre
Herculano (Europa-América, 1986-1838)
Procurando
a analogia com o humano, para depois permitir-se, pela semelhança
insinuada, correlacionar o seu ser desmedido ao homem, adianta ainda
mais a voz do mar:
Se ergueste a Deus um hino
Em dias de amargura;
Se te amostraste grato
Nos dias de ventura,
Seu nome não maldigas
Quando se turba o mar (…)
a
causa
Disso o universo ignora,
E mudo está. O nume,
Como o universo, adora!» (...)
Alexandre Herculano (Europa-América, 1986-1838)
Disso o universo ignora,
E mudo está. O nume,
Como o universo, adora!» (...)
Alexandre Herculano (Europa-América, 1986-1838)
Mas não é
da intenção humana vogar entre os elementos, nem conceder o ser
perante o horror ou adorar a natureza em seus portentos ou idílica
mansidão. Por isto blasfema a voz que intenta que o homem se incline
a essas formas. Responde o poeta ao mar, sustentando a dignidade
humana:
(…) torva blasfémia
Não manchará seu canto!
Brama a procela embora;
Pese sobre ele o espanto;
Que de sua harpa os hinos
Derramará contente
Aos pés de Deus, qual óleo
Do nardo recendente.
Alexandre Herculano (Europa-América, 1986-1838)
Não
está, pois, nesses excessos propostos pelo mar, o modo em que se
proporciona a medida humana. Além e apesar de tão ríspidas
dualidades e por tão diversos pareceres, sob o peso
do espanto procura
o homem encontrar sua medida e sua pertença, todavia, sem a
grandiosa representação marítima, mas por nossa vontade,
sensibilidade e inteligência, potências capazes de nos realizar
autónomos dos elementos resplandecentes ou em fúria, e autónomos
das enormidades materiais ou morais.
Miguel
Torga também nos propicia uma exposição desta dramática dualidade
do mar, entre a dimensão do fechado e do aberto, mas que nos
distingue de sua natureza anfibológica, a ambiguidade desesperada de
um mar encerrado nos seus limites. Por um lado, referindo os
naúfragos, todos, estão estes de sombra tecidos e em sombra
soterrados no coração ciumento de um
mar fechado que os encerra, representando o bojo da morte, por outro
lado mostra um mar que pode ser aberto e descoberto «Com
bússulas e gritos de gajeiro!»,
como a vida, se subtraída às dualidades dos acessos de fúria e
desespero e aos momentâneos idílios, mas conhecendo o operativo
mar, esse modo «(…) salgado,
lírico, coberto/ De
lágrima, iodo e nevoeiro!».
Ouçamos
o poeta:
Soterrados
em verde, negro e vago,
Nenhum
sol os aquece.
Habitantes
do lago
Do
esquecimento, só a sombra os tece...
Ela
que és tu, anónimo oceano,
Coração
ciumento e namorado!
Ela
que és tu, arfar viril e plano,
Largo
como um braço descuidado!
Tu,
mar fechado, aberto e descoberto
Com
bússulas e gritos de gajeiro!
Tu,
mar salgado, lírico, coberto
De
lágrima, iodo e nevoeiro!
Miguel Torga (Tip. Gráf. de
Coimbra, 1978-1946)
domingo, 9 de outubro de 2016
Não basta apenas pensar e realizar as políticas corretas
O que
nós mais precisamos é de continuidade estratégica,
que apenas a instituição real, de ampla representação,
apartidária, e porque permanece, pode dar voz e asseverar. Não basta apenas pensar políticas corretas, é necessário nelas perseverar. Monarquia,
constituição e uma democracia parlamentar reforçada é uma
configuração politicamente bem estruturada, benéfica à eficácia
da democracia e, enfim, à afirmação portuguesa.
sexta-feira, 7 de outubro de 2016
Anacronismo: Preconceito, Propaganda, Impertinência
As
atuais criticas à monarquia são rigorosamente as mesmas que se fizeram no século
XIX, e estas críticas resultaram mais do descrédito em que caiu oa atividade do Parlamento
de então, do que às próprias funções dos reis. Hoje, essas
críticas à monarquia, alinhadas na literatura do século XIX, estão completamente desfasadas para além de sua injustiça quando referidas ao tempo da Monarquia portuguesa. Pior, hoje, os [pre]conceitos e propaganda republicana não têm contraditório.
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