Boiar
o sonho nesta nação
única de memória do mar
Depois
de um prolongado fenecer das práticas económicas e sociais dos
portugueses relativamente às suas atividades marítimas, emerge
novamente no pensamento estratégico nacional o mar como desígnio de
desenvolvimento socioeconómico,
elemento fulcral da nossa geoestratégia do mar,
desde 2006, isto é, como fonte de crescimento económico, como meio
desenvolvimento social adequado ao País. Poucos anos depois, as
cidades viram-se para o mar com seus passeios marítimos, a
tecnologia desenvolve-se, começa o direcionamento do investimento
para este amplo setor, ganham-se competências de negócio e
profissionalização, aumenta a atenção dada pela governança, e a
Economia do Mar torna-se visivelmente de social importância
relativamente às suas potencialidades para o emprego, quer pela sua
dimensão quer pelas competências requeridas, transversais a todos
os tipos de qualificação profissional.
O
mar identifica-nos como País distinto no seio de uma globalização
tendencialmente padronizadora e por
suas potencialidades socioeconómicas e culturais podemos encontrar a
dimensão, a escala e a profundidade que falta ao território.
Contudo, haverá também que gerar esse fator grandeza que não
existe na maioria da mentalidade portuguesa. Se já são ensaiados os
primeiros passos para a maritimidade da nossa economia,
regenerando social e economicamente a nossa imensa varanda oceânica
com excelência, monitorizando os produtos e os métodos, ainda falta
uma maior difusão tanto da informação das oportunidades (de que o
Jornal da Economia do Mar e a recentemente iniciada série documental
da RTP «Regresso ao Mar» são exemplo) como também carece a maior
difusão das atividades culturais (artísticas, de lazer e
desportivas) relacionadas com o mar.
A
poesia, geração após geração, não só tem elaborado a leitura
do mar nas várias dimensões em que se tem vindo a relacionar com a
vida portuguesa, mas também, no seu campo próprio de conhecimento
tem conferido e tem acentuado a maritimidade portuguesa, mesmo quando
esta teve nas recentes décadas um recuo tremendo nas áreas
económicas. A poesia, atividade reflexiva e interpretativa, nunca
deixou diretamente de descobrir o mar na identidade portuguesa pela
sua linguagem intemporal. O mar
é um nosso histórico, por várias razões, não apenas geográficas,
culturais e sociais, devido à sua proximidade, mas também,
sobretudo, pelo adquirido histórico, na medida em que assinalámos a
entrada do mundo europeu numa nova época, enquanto se passou a
apresentar o conhecimento do mundo à escala global, encetámos a
época dos avanços científicos e tecnológicos europeus que
perdurou cerca de quinhentos anos, e a terra voltou a ficar redonda.
A rememoração da nossa história permite algumas afirmações
constantes na nossa consciência. Abrimos o mar:
(…)
fomos abrindo aqueles mares,
Que
geração alguma não abriu
(...)
Camões
(Lusíadas,
V, 1572)
Ou,
numa outra versão que perdura nos atuais manuais escolares,
(...) Que
era dantes o mar? Um quarto escuro
Onde os
meninos tinham medo de ir.
Agora o
mar é livre e é seguro
E foi
um português que o foi abrir.
Afonso
Lopes Vieira (Guimarães Ed., 1966-1940)
Abrir
é o verbo comum a estes excertos, mas uma abertura que revela o
âmago da humana aventura no seu caminho pelo apenas provável.
Todavia, além da elevação contínua e sistemática da
sofisticação, além da inovação e domínio técnico, que não
foram de pouca monta, essa abertura não foi realizada sem
sacrifício:
(…) o
corpo morto dum herói, primeiro
Cruzado da unidade deste
mundo,
No dorso frio de uma onda
irada,
Mandou aos mortos, com a mão
na espada,
Boiar o sonho, que não fosse
ao fundo.
Miguel
Torga (Gráfica Coimbra, 1995-1952/1965)
E
foi esta afirmação além do individual, esta tenacidade além do
limite humano da mortalidade, incluíndo o projeto pessoal num
desígnio transgeracional, numa marca institucional ou nacional, é
ainda hoje o único sentido que nos pode orientar a realizar caminho
além das possibilidades já configuradas, insistindo em memória e
progresso.
As
possibilidades ou oportunidades abrem como fecham-se e são
contrárias por natureza aos ismos
ou à estabilização. Apenas os objetivos políticos nacionais e o
concomitante desenvolvimento de competências permanecem como pontes
ao mundo futuro. No dizer do poeta,
não há alma
mais poderosa
senão aquela que se constitui pela procura, processo cujo desfecho
é sempre representado num mundo
novo:
No
mundo dos que gritam
Há uma
alma mais poderosa
Mais
chorada pelo povo
E
saudosa.
A
sua arte é a busca do mundo novo.(...)
Miguel
Torga (Gráfica Coimbra, 1995-1952/1965)
E
esta procura do novo,
humana realização na incerteza do possível, fosse realizada no
passado ou a que realizamos diária e constantemente, é para nós
historicamente simbolizada pela viagem no Tenebroso.
Tratou-se
e trata-se ainda de unir a certeza do já dado ao mundo que nos está
em falta, o conhecido ao desconhecido, pois da certeza pela incerteza
é feito o caminho da aventura humana:
(...)
Era o resto do mundo que faltava
(Porque faltava mundo!)
E o agudo perfil mais se
aguçava,
E o mar jurava cada vez mais
fundo.
Sagres sagrou então a
descoberta
Por descobrir:
As duas margens da certeza
incerta
Teriam de se unir!
Miguel Torga (Gráfica
Coimbra, 1995-1952/1965)
Historicamente
e ainda hoje, para nós, não fora o mar, pouco mais haveria a
continuar:
(...)
Não fora o mar
e
o longo apelo, o canto da sereia,
apenas
ilusão, miragem,
breve
canção, passo breve na areia,
desejo
balbuciante de viagem.
Fernanda
de Castro (Império,
1941)
A
série de acontecimentos históricos só toma sentido por
interpretações, ações e consequências além do seu presente
factual. O Pinhal de Leiria é aumentado por D.Dinis (1279-1325)
já com intenção marítima, depois de plantado por D.Sancho II e
D.Afonso III. Este aumento tornou possível a capacidade - pioneira -
de se adquirir gratuitamente a madeira para a construção de navios
de grande porte, de modo a fazer aumentar as trocas comerciais com o
exterior, contudo, sendo o pinhal sempre renovado na medida dos
cortes então efetuados. Nesta abertura da possibilidade marítima,
tão cedo elaborada em relação à Europa, fomos também os
primeiros seguradores marítimos do mundo, com a Bolsa
de Mercadores
(1293) com D. Dinis e depois com a associação mutualista Companhia
das Naus (1380)
no tempo de D. Fernando (1367-1383).
A inovação técnica acompanhará também a construção naval,
exemplo disto é a
Caravela Redonda, resultado da informação recolhida pelos
portugueses com objetivos de melhoramento das suas possibilidades de
marinharia face aos ventos que foram encontrando. Em
1864 D. Luís criou o Domínio Público Marítimo (DPM). Estadista e
homem de ciência, há 150 anos teve o sonho de tornar Portugal num
HUB dos transportes marítimos europeus, desenvolvendo uma rede
ferroviária desde o coração da Europa até aos portos portugueses,
e uma frota que assegurasse a distribuição de pessoas e mercadorias
para África e América do Sul.
Não
bastasse estas e outras vanguardas portuguesas relativamente aos
assuntos do mar, a
nossa relação com o mar elaborou contributos civilizacionais
singulares, socioeconómicos
e culturais, e justamente nos atribuem a primeira onda da
globalização, na expressão indiana, a era gâmica.
É, pois, nesta dimensão consciente e histórica que a poesia em
Portugal, quando se liga ao mar acontece de forma única, como seu
próprio símbolo e metáfora. A evidenciação desta pertença,
marítima e poética, adquire na expressão de Natália
Correia uma interpretação magistral:
Sou
filha de marinheiros
pelo
mar que também quis.
Pela
linha da poesia
sou
neta de D.Dinis.(...)
Natália
Correia, (Dom Quixote, 2013-1954)
Pelo
mar que também quis
não pode ser uma expressão colhida apenas literalmente como a sua
viagem voluntária efetuada de Ponta Delgada (Açores) a Lisboa, mas
de modo a procurar a plenitude metafórica da poesia terá de ser
esse mar que também
quis, o mar que é
abertura e horizonte em que se elaboram as humanas navegações por
um desconhecido a descobrir. E nisto, continua a sobressair um
símbolo inconfundivelmente de valor universal, a da alma em
constante procura de um mundo novo. Como diz Miguel Torga, essa alma
mais poderosa, que
abre as possibilidades novas.
Saibamos
ultrapassar o tempo conjuntural por determinação política,
institucional e nacional, e construir incessante e sistematicamente
uma Economia do Mar, como fizemos Boiar
o sonho, que não fosse ao fundo.
Assim, na nossa evidência
histórica, seremos como fomos, na vanguarda e na identificação
coletiva,
(...)
uma nação única de memória do mar,
que
não responde senão em nós. (…)
Fiama
Hasse Pais Brandão (Relógio
D'Água, 2000).