O sons,
as imagens e as emoções provocadas pela tempestade marítima são
constantes na transversalidade da poesia através das épocas. A
sonoridade da tempestade, o rugido, o bramar, o ranger, o estrondo da
trovoada, o crepitar e o traçado dos relâmpagos, as imagens, as
torres de nuvens espessas, as montanhas e serras de ondas
avassaladoras, a negrura noturna, o vento furioso, caraterizam
invariavelmente a descrição poética da tenebrosa tempestade no
mar. De modo geral a tempestade marítima é uma batalha entre os
elementos do ar, da água e da luz, que parece intentar destruir o
próprio mundo:
(…)
Agora sobre as nuvens os
subiam,
As
ondas de Netuno furibundo;
Agora
a ver parece que desciam
As
íntimas entranhas do Profundo.
Noto,
Austro, Bóreas, Aquilo queriam
Arruinar
a máquina do mundo (…)
ou:
(...)
Como em fera
batalha, os Elementos
A
vingarem-se huns de outros se resolvem,
Que
agoas contra agoas, ventos contra ventos,
O
mar com o Ceo, o Ceo com o mar involvem.
Com
nuvẽs, & relampagos violentos
As
areas do fundo se revolvem (…)
ou ainda
(...)
Levanta
lá no céu furiosas ondas;
Austro
bramando corre ali com fúria,(...)
Rompe-se
por mil partes o céu, e arde
Em
ligeiro, apressado, vivo fogo.
Um
rugido espantoso vai correndo
Desde
o Antárctico Pólo ao seu oposto.
Arremessam-se
lanças pelos ares
De
congelada pedra em água envolta;
Com
espantoso ímpeto, e rasgadas
As
densas negras nuvens raios cospem
(...)
Neste
combate das forças impessoais encontra-se inevitavelmente o homem
envolvido em medo e foge toda a natureza viva sob o poder destruidor
dos elementos embravecidos:
As
Alcióneas aves triste canto
Junto
da costa brava levantaram,
Lembrando-se
do seu passado pranto,
Que
as furiosas águas lhe causaram.
Os
delfins enamorados entretanto
Lá
nas covas marítimas entraram,
Fugindo
à tempestade e ventos duros,
Que
nem no fundo os deixa estar seguros.
Trata-se
de um cenário terrível, transcendente às forças humanas. Passar
nessa paisagem revolta em fúria é abeirar-se da morte e brevemente
dá-la como certeza. A fragilidade do humano perante a morte torna-se
evidente. O seu soçobrar ou a sua sobrevivência são suas questões
permanentes durante a tempestade. Os elementos surgem desalinhados
daquilo que é o próprio e possível do viver humano. E o seu saber,
a sua perícia, não é garantia de salvação. Na tempestade
marítima «nas águas tempestuosas e letais (…) perdem, engolem e
matam» (J.Cândido
Martins)
e apenas há abrigo na suma fragilidade do navio envolto em forças
que o transcendem e na arte da navegação, mas só enquanto assiste
tal possibilidade sempre pronta a desfazer-se pela guerra elemental
da tempestade.
O vento
endoidecido, a chuva violenta, o mar encapelado, o fulgor estrondoso
dos relâmpagos, suas sonoridades, em que tudo é surpreendentemente
grandioso e avassalador, constituem um extremo do possível, vive-se
uma exceção da existência, mais além do que a natureza tem de ser
para que o homem seja possível. E, no mar, o abrigo perante os
elementos é muito mais frágil, propiciando o espanto e o terror
perante a realidade de que a sobrevida humana de si mesma pouco
dependa – como se pode viver num cenário além da força humana?
Quando
(…)
os ventos que
lutavam
Como
touros indómitos bramando,
Mais
e mais a tormenta acrescentavam (...)
Relâmpados
medonhos não cessavam,
Feros
trovões, que vêm representando
Cair
o céu dos eixos sobre a terra,
Consigo
os elementos terem guerra.(...)
ao
homem cabe seguir sua arte e ciência, a navegação, porém, à
vista das Parcas que tecem talvez o final abrupto da tecedura de
nossos humanos dias. Eis
quatro breves descrições de uma desordenada natureza antagonista da
possibilidade da vida humana:
Sibila
o vento: os torreões de nuvens
Pesam
nos densos ares:
Ruge ao largo a procela, e encurva as ondas
Pela
extensão dos mares:
A imensa vaga ao longe vem correndo
Em seu
terror envolta;
E, dentre as sombras, rápidas centelhas
A
tempestade solta.(...)
Ou, vinda
de uma época mais distante:
(...)
Eis manso e manso as
nuvens se entumecem,
Eis
o líquido pêso
Rompe
os enormes carregados bôjos, (...)
Rebentam
furacões, flamejam raios,
O
estrondoso trovão no céu rebrama,
(...)
a procela [tormenta]
horríssona recresce,
Tingem
sombras do inferno os véus da noite
Que
o relâmpago retalha:
Braveja
o mar, aos astros se remontam
Serras
e serras da fervente espuma;
Carrancudos
tufões arrebatados
Dobrando
a força, a raiva, lutam, berram
E
revolvem do pélago [abismo]
as entranhas;
(…)
Com maior
distanciação temporal também apresentamos esta versão da
tempestade:
Cobre-se
o céu de grossas negras nuvens,
Os ventos mais e mais cada hora
crescem,
Já se escurece o céu, já com soberba
Inchadas
grossas ondas se levantam.
A nau começa já passar trabalho,
Já
começa gemer, e em tal afronta
O apito soa, brada o mestre,
acodem
Com presteza varões no mar expertos.
Põe-se o fero
Vulturno junto ao cabo,
Levanta lá no céu furiosas ondas;
Austro
bramando corre ali com fúria,
Dando um balanço à nau que quase
a rende,
Vem com grande furor Bóreas raivoso,
Comete por
davante, o passo impide,
Encontra as grandes velas, e, por
força,
Ao mastro as pega e a nau atrás empuxa:
Rompe-se por
mil partes o céu, e arde
Em ligeiro, apressado, vivo fogo.
Um
rugido espantoso vai correndo
Desde o Antárctico Pólo ao seu
oposto.
Arremessam-se lanças pelos ares
De congelada pedra em
água envolta;
Com espantoso ímpeto, e rasgadas
As densas
negras nuvens raios cospem:
De um golpe as velas vêm todas
abaixo.
Jerónimo
Corte-Real
(Typografia
Rollandiana,1783-1574)
São
constantes as fórmulas da descrição! Sinteticamente, é um
desordenado
inferno que se representa na tempestade (Brás
Garcia Mascarenhas,
1699), um caos, uma desordem incontida que ultrapassa o poder de
escolha humano, eventualmente sobrepondo-se à arte de navegar:
Eis
o mestre, que olhando os ares anda,
O
apito toca: acordam, despertando,
Os
marinheiros dũa e doutra banda,
E,
porque o vento vinha refrescando,
Os
traquetes das gáveas tomar manda.
–
«Alerta (disse) estai, que o
vento crece
Daquela
nuvem negra que aparece!»
Não
eram os traquetes bem tomados,
Quando
dá a grande e súbita procela.
–
«Amaina (disse o mestre a
grandes brados),
Amaina
(disse), amaina a grande vela!»
Não
esperam os ventos indinados
Que
amainassem, mas, juntos dando nela,
Em
pedaços a fazem cum ruído
Que
o Mundo pareceu ser destruído!
Podemos
verificar a pregnância das noções que a tempestade marítima nos
provoca, primeiro, a semelhança intemporal nas descrições, a
tempestade é um combate de gigantes, entre elementos naturais:
forças desumanas, segundo, o olhar que a tempestade marítima
devolve sobre nós acerca de nossa fragilidade em meio tão
agressivo, terceiro, as analogias que propicia relativamente à nossa
vivência em subjetividade (como o mar nos embravecemos, por exemplo,
ultrapassando a ordem que o homem tem de trilhar devido à sua
inteligência e necessidade de profícua sociabilidade).
Se
permanece bem caraterizada a fragilidade humana - e nisto a nossa
dependência última do que nos é transcendente -, se permanece
também entre os terrores a necessidade de segurar o medo que nessas
condições desponta, querendo comandar a razão – se algum espaço
para ela há – será então esta a sua mais forte garantia, mas se,
contudo, para ela não há espaço nem arte que valha, contudo, então
apenas a esperança poderá resistir:
(...)
Fragil
taboinha, que o bater das ondas
Póde
num so momento
Fazer
em mil pedaços!
Ai
de mim! Trinta vezes no horizonte
O
pae das luzes despontou radioso,
E
co'a tocha brilhante
A
meus cançados olhos
Nada
mais amostrou que o quadro imenso
De
soledade infinda, – os ceus
e os máres! (...)
Ainda
no seguimento do disposto por Almeida Garrett relativamente à
solidão humana na sua fragilidade, de onde brota a esperança sobre
todas as dificuldades, a tempestade no mar ajuda também a reconhecer
outras batalhas travadas na subjetividade humana, interiormente. Esta
analogia das tempestades com a subjetividade humana foram também
tratadas por Francisco
Pina de Mello e Fernando
Rodrigues Lobo 'Soropita':
No
mar em que de novo amor me guia,
O
mais seguro porto e dar a costa;
Aonde
todos se perdem, ai esta posta
Minha
salvação, ai me salvaria.
So
fe me há-de salvar nesta porfia
Do
vento, que contrario vem de aposta;
E
pois sua mor perda e dar a costa
Comigo,
eu com costa me queria.
Que
vai ja o querer, aonde a ventura
Criou
tão desigual merecimento?
Valha-me
pura fe, vontade pura!
Valha-me
navegar meu pensamento
Com
tal estrela, cuja formosura
Abranda
o duro mar de meu tormento.
e em
Francisco Pina de Mello:
Que
bravo o mar se ve! Como se ensaia
Na
furia e contra os ares se rebela!
Como
se enrola! Como se encapela!
Parece
quer sair da sua raia.
Mas
tambem que inflexivel, que constante
Aquela
penha esta a forca dura
De
tanto assalto e horror perseverante!
O
empolado mar, penha segura,
Sois
a imagem mais propria e semelhante
De
meu fado e da minha desventura.
Já em
António Ferreira é considerada como uma demasia os arrojos humanos
pelos oceanos, numa fala que é semelhante à do Velho do Restelo, a
sensatez e o acometer feitos estão na balança, ganhando a primeira:
(…)
meu irmão,
metade
da
minha alma (...)
[que]
tornes vivo, e
são
do
fogo, e tempestade
a
que se aventurou c'o esprito ousado.
Vença
à dura fortuna a boa tenção.
Quem
cometeu primeiro
ao
bravo mar num fraco pau a vida
de
duro enzinho, ou tresdobrado ferro
tinha o peito, ou ligeiro
juízo,
ou sua alma lh'era aborrecida.
Dino
de morte cruel no seu mesmo erro.
Esprito
furioso
que
não temeu o pego alto revolvido
(entregue
aos ventos, posto todo em sorte)
do
sempre tempestuoso
Áfrico,
nem os vaus cegos, e o temido
Cila
infamado já com tanta morte!
A
que mal houve medo
quem
os monstros no mar, que vão nadando,
com
secos olhos viu? Que o céu cuberto
de
triste noite, e quedo
sem
defensão, c'o corpo só esperando
está
a morte cruel, que tem tão perto?
Se
Deus assi apartou
com
suma providência o mar da terra,
que
a nós, os homens, deu por natureza,
como
houve homem que ousou
abrir
por mar caminho mais a guerra
qu'a
paz, e a morte mais, roubo e crueza?
Que
cousas não cometes,
ousado
esprito humano, em mar, e em fogo
contra
ti só diligente, e ingenioso?
Que
já te não prometes,
des
qu'o medo perdeste à morte, e em jogo
tens
o que de si foi sempre espantoso?
Um
o céu cometeu;
outro
o ar vão experimentou com penas
não
dadas a homem; outro o mar reparte
que
por força rompeu.
Senhor,
que tudo vês, que tudo ordenas,
pera
Ti só chegarmos dá-nos arte.
Poemas
Lusitanos,
1598
Todavia,
não são apenas formados de ousadia temerária tais empreendimentos
marítimos, pois as duras experiências e a morte iminente podem
transmutar os terrores na revelação de um valor imortal para o
homem, enquanto este se realiza no trabalho em meio das dificuldades,
mostrando firmeza no Amor que dedica à sua função, ao seu
trabalho, apesar das contrariedades com fatais perfis. Camões
proporciona nas suas Rimas,
pela fala do Capitão Themioscles, o ganho de uma afinação imortal
para o homem que permanece na sua função ante sua iminente morte -
«vendo
a morte diante de mim»
-, enquanto o seu objetivo ainda está longe, como se dissesse: feliz
o homem que a morte o surpreende trabalhando. Só nestas extremas
condições é apurado o Amor: «Ali
Amor mostrando-se possante / e
que por nenhum modo não fugia, / –
mas quanto mais trabalho, mais constante – ».
Consideremos o excerto do poema que expõe mais completamente esta
ideia:
(...)
As cordas, co ruído, assoviavam;
os
marinheiros, já desesperados,
com
gritos para o Céu o ar coalhavam.
Os
raios por Vulcano fabricados
vibrava
o fero e áspero Tonante,
tremendo
os Pólos ambos, de assombrados!
Ali
Amor mostrando-se possante
e
que por nenhum modo não fugia,
– mas
quanto mais trabalho, mais constante – ,
vendo
a morte diante de mim, dizia:
«Se
algûa hora, Senhora, vos lembrasse,
nada
do que passei me lembraria».
Enfim,
nunca houve cousa que mudasse
o
firme Amor do intrínseco daquele
em
cujo peito ûa vez de siso entrasse.
Ûa
cousa, Senhor, por certo asssele:
que
nunca Amor se afina nem se apura,
enquanto
está presente a causa dele.(...)
LVCamões,
«O poeta Simónides, falando», Rimas,
(excerto
da fala do Capitão Themioscles) 1953-1595